Vitória
da Silva Rodrigues anda nos 80 anos e habita na freguesia de Calvos (Póvoa de
Lanhoso). Da quinta onde mora, que fora dos seus avós e cujas 'voltas' davam um
romance de Camilo, herdou ela o apelido, 'Cajus', Vitorinha de Cajus. Ai, quem
dera ao repórter ter bebido as palavras ouvidas e ter dez páginas para contar o
que ouviu, vinte, cinquenta, que linda história poderia contar
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Vitória da Silva Rodrigues, a Vitorinha de Cajús |
No
quinteiro da casa ainda ciscam galinhas. E nos campos ao de ao pé da porta, passarada tonta
recolhe apressada e barulhenta aos galhos onde vai passar a noite, que se chega a
passos rápidos. É a Quinta de Cajús, no lugar de Nasce, freguesia de Calvos,
conhecido por ali ter estado sediada a Banda de Música que ora é de toda a
freguesia — Banda de Nasce, quem não se lembra...?
É
na eira, entre o quinteiro enlameado da galinhagem e os campos onde chilreiam
pardais, a dois passos das escadas de acesso aos cómodos da casa, que nos quedamos
a conversar com os donos. «— Eu? Sou José Pires Pereira e vou fazer noventa
anos», atira o proprietário, acabado de chegar de «apanhar uma gabela de
erva...». Não é dali natural. «— Sabe? sou de Lama Longa, no Barroso... Vim cá
comprar a quinta e topei com a mulher aqui...»
A
esposa, Vitória da Silva Rodrigues, nos 80 anos, o rosto todo cavado de rugas
como campo arado de fresco, segura as rédeas da conversa: «— Eu conto ao
senhor, que conto melhor. Olhe, eu tinha 18 anos, e ele (aponta o marido) veio
cá comprar esta quinta... Mas deixe-me ir atrás... a quinta era de meus avós;
só que houve aqui uma questão entre minha mãe e uma minha tia e ficaram
empenhados, sem dinheirinho, sabe? E por isso a quinta teve de ir à praça,
coisas daquele tempo que o senhor não se recorda. E foi assim que ele veio cá
comprá-la... Ele, lá na terra dele, andava no minério, no volfrâmio, que dava
muito dinheiro. Foi então que um irmão dele veio comprar uma quinta a Pandosas
(Vieira do Minho) e o povo lá informou-os que havia aqui em Nasce esta quinta,
também à venda... E foi aí que a coisa se deu. Eu vou explicar a ver se o
senhor entende: meus avozinhos iam vendar a quinta e coitadinhos, viam-se
obrigados a ir servir, e a minha mãe também (o meu pai tinha ido para o Brasil
e não dava sinais de vida...), e eu também! Vendia-se a quinta e tínhamos todos
de ir servir... Mas ele (e volta a apontar o marido) estava aqui e alguém
disse: «— Mas pode haver uma maneira de se remediarem as coisas, de vocês todos
não irem servir... Há aquela menina (eu era filha única) tão linda... podia-se
arranjar um casamento e vocês ficavam aqui...»
Vitorinha
de Cajús mudou de expressão, calou-se durante alguns segundos, depois
continuou: «—Não, é coisa que não pode ser! Eu não o queria, tinha cá a minha
vida... Mas a minha mãe, e até mais os meus avós, que eram velhinhos, tinham
que ir servir... Houve grandes empenhos, veio cá gente de peso para eu me casar
com ele, e eu nã, eu não queria... não havia pessoa nenhuma que me virasse. Até
que um dia o meu avô — que era a pessoa no mundo a quem eu mais amor tinha... —
disse-me: "Então tu não queres casar, minha filha?" E eu disse de
maneira nenhuma. E ele com as lágrimas nos olhos: "Eu só queria ter uma
muda e tenho que sair daqui..." Aquilo custou-me tanto, tanto, tanto que
eu disse: Já está paisinho! Ainda que eu case hoje e amanhã tenha que ir
servir... você fica aqui. E depois então casei. Mas olhe que sempre a pensar
que no outro dia a coisa acabava. Até que chegou o dia do casamento. Naquele
tempo os comeres dos casamentos eram em casa, e veio para aí a família dele. E agora
vou-lhe contar: pois os irmãos dele eram tão meus amigos, tão meus amigos...
Depois comecei a ter filhos, eles não tinham mais que me fazer...»
Atrevo-me
a interromper, para perguntar: quantos filhos?
A
dona Vitória, Vitorinha de Cajús, enche o peito de ar, orgulhosa agora: «—
Tenho dez filhos vivos, e morreram-me dois...» Admiro-me: dez filhos! Ele
reafirma, confirmando as palavras com gestos largos de mãos: «— Dez filhos,
estou-lhe a dizer! Olhe, dois estão no Brasil, dois na França, quatro no Luxemburgo
e dois aqui...»
Sobre
o assunto casamento atiro-lhe de raspão uma última pergunta: com oitenta anos,
está arrependida do passo que deu? A resposta veio num repente: «— Nada! qual quê?!» E
repete-se: «— Nada!...»
Tinha
ido a Calvos em busca de umas informações sobre mestre Távora, grande pintor,
que na primeira metade do século XX se estabeleceu na Póvoa de Lanhoso, e cuja
esposa estava ligada por laços familiares à Quinta de Cajús, local onde, por
isso mesmo, o casal de artistas esteve hospedado por largo tempo.
Vitorinha
lembra-se bem dessa estada, embora fosse ainda bastante nova. «— A esposa dele
era D. Elvira, uma senhora que se vestia muito bem, que se pintava muito...
tinha uma cadelinha a quem dava tudo, chamavam-lhe Bionet. Saíam e levavam-na
sempre com eles. Vou-lhe contar uma história: um dia estavam a sair e ela disse
à minha avó (antigamente chamava-se maezinha à avó), ela disse à maezinha:
"Hoje vou deixar a Bionet, você estime-ma, dê-lhe banhinho como de
costume... Mal ela saiu a maezinha virou-se para mim: "Dá-lhe um banho
acolá no tanque." E eu, pumba! dentro do tanque!... Quando a D. Elvira
chegou a cadela estava sentada ali no alto das escadas, a chorar, parecia uma
pessoa a contar o que se passou. E eu disse à maezinha: «A puta da cadela
parece que queria contar que chafurdou no tanque...». E a maezinha: "Ó
rapariga, deixa-a contar..."
Foram
muitas as histórias que a Vitorinha nos contou sobre mestre Távora e D. Elvira
— que viveram com todas as mordomias mas acabaram a pedir esmola nas ruas da vila!
Tantas, tantas, que darão, um dia destes, para escrever outra matéria...
Antes,
porém, gostaria de voltar a Calvos, a Cajús, para ouvir histórias contadas por
essa mulher que me deixou encantado: hoje, poucos sabem contar histórias assim.
E para além do mais, sempre embrulhadas numa gargalhada contagiante. «— Sabe»,
diz-me já a modos de despedida, «acho que hei-de morrer a rir...»
Deus
a oiça, mas que demore a cumprir...