sábado, 16 de março de 2013

«A puta da cadela!»



Vitória da Silva Rodrigues anda nos 80 anos e habita na freguesia de Calvos (Póvoa de Lanhoso). Da quinta onde mora, que fora dos seus avós e cujas 'voltas' davam um romance de Camilo, herdou ela o apelido, 'Cajus', Vitorinha de Cajus. Ai, quem dera ao repórter ter bebido as palavras ouvidas e ter dez páginas para contar o que ouviu, vinte, cinquenta, que linda história poderia contar

Vitória da Silva Rodrigues, a Vitorinha de Cajús


























 

No quinteiro da casa ainda ciscam galinhas. E nos campos ao de ao pé da porta, passarada tonta recolhe apressada e barulhenta aos galhos onde vai passar a noite, que se chega a passos rápidos. É a Quinta de Cajús, no lugar de Nasce, freguesia de Calvos, conhecido por ali ter estado sediada a Banda de Música que ora é de toda a freguesia — Banda de Nasce, quem não se lembra...?
É na eira, entre o quinteiro enlameado da galinhagem e os campos onde chilreiam pardais, a dois passos das escadas de acesso aos cómodos da casa, que nos quedamos a conversar com os donos. «— Eu? Sou José Pires Pereira e vou fazer noventa anos», atira o proprietário, acabado de chegar de «apanhar uma gabela de erva...». Não é dali natural. «— Sabe? sou de Lama Longa, no Barroso... Vim cá comprar a quinta e topei com a mulher aqui...»
A esposa, Vitória da Silva Rodrigues, nos 80 anos, o rosto todo cavado de rugas como campo arado de fresco, segura as rédeas da conversa: «— Eu conto ao senhor, que conto melhor. Olhe, eu tinha 18 anos, e ele (aponta o marido) veio cá comprar esta quinta... Mas deixe-me ir atrás... a quinta era de meus avós; só que houve aqui uma questão entre minha mãe e uma minha tia e ficaram empenhados, sem dinheirinho, sabe? E por isso a quinta teve de ir à praça, coisas daquele tempo que o senhor não se recorda. E foi assim que ele veio cá comprá-la... Ele, lá na terra dele, andava no minério, no volfrâmio, que dava muito dinheiro. Foi então que um irmão dele veio comprar uma quinta a Pandosas (Vieira do Minho) e o povo lá informou-os que havia aqui em Nasce esta quinta, também à venda... E foi aí que a coisa se deu. Eu vou explicar a ver se o senhor entende: meus avozinhos iam vendar a quinta e coitadinhos, viam-se obrigados a ir servir, e a minha mãe também (o meu pai tinha ido para o Brasil e não dava sinais de vida...), e eu também! Vendia-se a quinta e tínhamos todos de ir servir... Mas ele (e volta a apontar o marido) estava aqui e alguém disse: «— Mas pode haver uma maneira de se remediarem as coisas, de vocês todos não irem servir... Há aquela menina (eu era filha única) tão linda... podia-se arranjar um casamento e vocês ficavam aqui...»
Vitorinha de Cajús mudou de expressão, calou-se durante alguns segundos, depois continuou: «—Não, é coisa que não pode ser! Eu não o queria, tinha cá a minha vida... Mas a minha mãe, e até mais os meus avós, que eram velhinhos, tinham que ir servir... Houve grandes empenhos, veio cá gente de peso para eu me casar com ele, e eu nã, eu não queria... não havia pessoa nenhuma que me virasse. Até que um dia o meu avô — que era a pessoa no mundo a quem eu mais amor tinha... — disse-me: "Então tu não queres casar, minha filha?" E eu disse de maneira nenhuma. E ele com as lágrimas nos olhos: "Eu só queria ter uma muda e tenho que sair daqui..." Aquilo custou-me tanto, tanto, tanto que eu disse: Já está paisinho! Ainda que eu case hoje e amanhã tenha que ir servir... você fica aqui. E depois então casei. Mas olhe que sempre a pensar que no outro dia a coisa acabava. Até que chegou o dia do casamento. Naquele tempo os comeres dos casamentos eram em casa, e veio para aí a família dele. E agora vou-lhe contar: pois os irmãos dele eram tão meus amigos, tão meus amigos... Depois comecei a ter filhos, eles não tinham mais que me fazer...»
Atrevo-me a interromper, para perguntar: quantos filhos?
A dona Vitória, Vitorinha de Cajús, enche o peito de ar, orgulhosa agora: «— Tenho dez filhos vivos, e morreram-me dois...» Admiro-me: dez filhos! Ele reafirma, confirmando as palavras com gestos largos de mãos: «— Dez filhos, estou-lhe a dizer! Olhe, dois estão no Brasil, dois na França, quatro no Luxemburgo e dois aqui...»
Sobre o assunto casamento atiro-lhe de raspão uma última pergunta: com oitenta anos, está arrependida do passo que deu? A resposta veio num repente: «— Nada! qual quê?!» E repete-se: «— Nada!...»

Tinha ido a Calvos em busca de umas informações sobre mestre Távora, grande pintor, que na primeira metade do século XX se estabeleceu na Póvoa de Lanhoso, e cuja esposa estava ligada por laços familiares à Quinta de Cajús, local onde, por isso mesmo, o casal de artistas esteve hospedado por largo tempo.
Vitorinha lembra-se bem dessa estada, embora fosse ainda bastante nova. «— A esposa dele era D. Elvira, uma senhora que se vestia muito bem, que se pintava muito... tinha uma cadelinha a quem dava tudo, chamavam-lhe Bionet. Saíam e levavam-na sempre com eles. Vou-lhe contar uma história: um dia estavam a sair e ela disse à minha avó (antigamente chamava-se maezinha à avó), ela disse à maezinha: "Hoje vou deixar a Bionet, você estime-ma, dê-lhe banhinho como de costume... Mal ela saiu a maezinha virou-se para mim: "Dá-lhe um banho acolá no tanque." E eu, pumba! dentro do tanque!... Quando a D. Elvira chegou a cadela estava sentada ali no alto das escadas, a chorar, parecia uma pessoa a contar o que se passou. E eu disse à maezinha: «A puta da cadela parece que queria contar que chafurdou no tanque...». E a maezinha: "Ó rapariga, deixa-a contar..."
Foram muitas as histórias que a Vitorinha nos contou sobre mestre Távora e D. Elvira — que viveram com todas as mordomias mas acabaram a pedir esmola nas ruas da vila! Tantas, tantas, que darão, um dia destes, para escrever outra matéria...
Antes, porém, gostaria de voltar a Calvos, a Cajús, para ouvir histórias contadas por essa mulher que me deixou encantado: hoje, poucos sabem contar histórias assim. E para além do mais, sempre embrulhadas numa gargalhada contagiante. «— Sabe», diz-me já a modos de despedida, «acho que hei-de morrer a rir...»
Deus a oiça, mas que demore a cumprir...