quinta-feira, 12 de maio de 2011

A vida é uma roda

A voz áspera do homem deixou cair a frase que queimava como brasa acesa: «Mais valia mesmo eu ter morrido em criança!»
Conhecia-o pacato e calado de por ali. Por isso aquela frase, largada assim, inesperadamente, embateu-me no rosto com a violência de um punho fechado. Estava mesmo na minha frente e foi-me fácil fixá-lo: era um velho alto, de uma magreza impressionante; trajava um fato cinza, já muito coçado pelo uso, mas que mesmo assim lhe assentava como vestimenta talhada por medida por um grande alfaiate. Nos pés trazia uns sapatos bem engraxados e na cabeça, meio de lado, um chapéu branco de palhinha dava-lhe o toque de definitivo requinte.
Ficamos parados no passeio da rua, ele à minha frente, olhando-me pensativo, como que a medir aquilo que acabara de dizer. E repetiu com um leve sotaque do doce português falado no Brasil: «É, sim, mais valia mesmo eu ter morrido quando criança!»
Trazia por cortar uma barba de semanas e numa das mãos, esguia e trémula, um saco plástico com alguns dos seus pertences. Na outra, uma bengala que já conhecera melhores dias.
O lamento repetido magoou-me.
Perguntei-lhe a razão de tamanho desânimo.
Contou-me, então, como se desde há muito andasse à procura de um par de ouvidos dispostos a escutá-lo em silêncio, que de pequeno, «de muito pequeno» — repetiu —, sentira ser pouco querido. «Meu pai não gostava de mim e por isso, quase criança, fui obrigado a emigrar para o Brasil..»
Eu escutava-o calado, e ele continuou a contar que, no Brasil, comera o «pão amassado pelo diabo», que toda a vida fora um simples contínuo de um prédio de luxo, que jamais conseguira enriquecer, remediar que fosse a sua vida. «Eu era muito doente, e a vida é como a roda de um automóvel: roda, roda mas anda sempre sobre si mesma...»
Também não casou, nem teve descendência. Filho único solteiro e sem descendentes, quando é velho, não tem família chegada. Aos setenta anos reformou-se e voltou à terra. «Recebo uma pensão miserável que mal dá para pagar a renda e os medicamentos, quanto mais para comer... Os rapazes maltratam-me, chamam-me Champô e outros nomes feios, batem-me à porta durante a noite... Acordo todos os dias sem qualquer ponta de esperança de que a vida melhore, fazendo contas de como hei-de pagar o gasto de farmácia, supermercado, se dá para viver até ao fim do mês...»
Ficamos ambos calados. Eu sem saber o que responder, ele à espera de que eu lhe dissesse alguma coisa.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

A carta

O deslizar da caneta sobre o papel gomado provocava um estranho ruído, que lhe fazia lembrar o tempo em que, menina ainda, caminhava sobre ramos secos do quintal. Há mais de uma hora que Marta ali se entretinha a escrever aquela carta, dizendo à filha tudo o que quisera e não pudera dizer-lhe de viva voz.
Foi com um triste sorriso que colocou o ponto final. Está dito, pensou.
Dobrou cuidadosamente as três folhas escritas dos dois lados e meteu-as no envelope do mesmo papel.
Cerimoniosamente, levou o envelope à boca, humedeceu levemente a cola da orelha e fechou o envelope. Poisou-o sobre a mesa da sala, onde acabara de escrever a carta.
Só então se lembrou que não sabia para onde a mandar. A filha saíra de casa há três anos, a não voltara a dar sinal de vida.