terça-feira, 9 de julho de 2013

Os livros têm cheiro a liberdade


José Abílio Coelho

Que me recorde, quando eu era criança não havia livrarias na Póvoa de Lanhoso. Talvez se vendessem livros numa qualquer outra loja; mas vendiam-se como quem comercializava fazendas, fios elétricos ou rolhas de cortiça. Para combater essa lacuna, vinha regularmente uma furgoneta da fundação Gulbenkian, trazendo livros que alimentavam a nossa necessidade. A minha e a de mais uma dezena e meia de crianças e alguns poucos adultos. Essa furgoneta, da qual me lembro (tal como dos seus dois simpáticos ocupantes) como se a tivesse guardado até hoje ao fundo do quintal da minha casa, estacionava junto à fachada sul da casa da Botica, no largo de terra batida que era, para nós, o centro do mundo – e onde íamos requisitá-los.
Liam-se com avidez, construíam-se sonhos de aventuras improváveis por dentro das capas de obras como Os Cinco, Tarzan ou Os Irmãos Hardy e, duas semanas depois, voltávamos para os trocarmos por outros. Essa foi a minha primeira biblioteca a sério.



Depois, após o dia a que Sophia chamou “inicial, inteiro e limpo”, abriu na terra uma pequena livraria. Era de um homem que viera de África, o senhor Santos, que se dedicou à arte de vender livros. Sim, porque vender livros é uma arte. E logo depois veio outra, instalando-se como a primeira na avenida que lembrava a Liberdade. Não duraram muito: viriam a fechar, ambas, por falta de fregueses. Talvez porque os donos não fossem bons artistas para vender livros ou, porque, então como hoje, os livros interessassem apenas a uns poucos excêntricos que não garantiam o necessário para as despesas da casa.
No início dos anos noventa, uma das melhores casas da vila entrou em obras. “O asilo vai transformar-se numa biblioteca”, dizia-se. O asilo era a casa da Botica que, antes, durante décadas, servira de teto a miseráveis do concelho e que iria agora receber livros. E assim nasceu na Póvoa de Lanhoso a primeira biblioteca pública, cujas obras foram pagas pela câmara municipal e os livros, uma vez mais, pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Esta tornou-se sítio de convívios entre pessoas e livros. Com o passar dos anos, o número de leitores foi crescendo, continuando, contudo, a ser poucos para tantos livros ali depositados à mercê de quem os quisesse utilizar, como almofadas de penas próprias para sonhar. De então para cá, cresceu sempre a biblioteca da Póvoa em qualidade e tamanho, transformada em espaço de confraternização entre quem escreve e quem lê. E vice-versa.
Hoje, primeiro de julho de 2013 comemora-se mais um dia internacional das bibliotecas. Mas comemora-se também o 20º aniversário da biblioteca municipal da Póvoa de Lanhoso. Muita coisa mudou, para melhor, desde o dia em que este espaço foi criado e posto à disposição da comunidade.
Terá esta sabido aproveitá-lo convenientemente?
Não sei a resposta. Sei do divertimento que representa a leitura, seja como momento de puro entretenimento, seja como ferramenta para outros afazeres. E sei daquilo que hoje temos à mão de semear, a dois passos de casa, ao contrário do que acontecia quando, criança ainda, eu dava o meu reino do Curral por um cento e meio de páginas impressas que me levavam ao Oeste americano, onde cavalgava um sujeito de cabelos compridos e mosca no queixo, chamado Búfalo Bill e que era um dos meus heróis preferidos.
Acho que, entretanto, cresci alguma coisa. Por isso deixo de lado a saudade desses heróis de antanho que às vezes ainda revisito nas leituras que faço, para pensar na poesia de Ary, na prosa de Aquilino ou de Régio, nos diários de Torga, nos contos infantis de Matilde Rosa Araújo que povoam as estantes da minha biblioteca imaginária. E penso na frase entusiasmante de Borges ao escrever que “o livro é uma extensão do cérebro humano”. Gosto da frase de Borges. O livro é realmente a extensão do cérebro humano, fazendo às vezes com que seja o cérebro a extensão do livro.
Por isso gosto de bibliotecas e de livros. As bibliotecas sabem a sonho, enquanto que os livros têm cheiro a Liberdade.