José Abílio Coelho
Que
me recorde, quando eu era criança não havia livrarias na Póvoa de Lanhoso. Talvez
se vendessem livros numa qualquer outra loja; mas vendiam-se como quem
comercializava fazendas, fios elétricos ou rolhas de cortiça. Para combater
essa lacuna, vinha regularmente uma furgoneta da fundação Gulbenkian, trazendo livros
que alimentavam a nossa necessidade. A minha e a de mais uma dezena e meia de
crianças e alguns poucos adultos. Essa furgoneta, da qual me lembro (tal como
dos seus dois simpáticos ocupantes) como se a tivesse guardado até hoje ao
fundo do quintal da minha casa, estacionava junto à fachada sul da casa da
Botica, no largo de terra batida que era, para nós, o centro do mundo – e onde íamos
requisitá-los.
Liam-se
com avidez, construíam-se sonhos de aventuras improváveis por dentro das capas
de obras como Os Cinco, Tarzan ou Os Irmãos Hardy e, duas semanas depois, voltávamos para os
trocarmos por outros. Essa foi a minha primeira biblioteca a sério.
Depois,
após o dia a que Sophia chamou “inicial, inteiro e limpo”, abriu na terra uma
pequena livraria. Era de um homem que viera de África, o senhor Santos, que se
dedicou à arte de vender livros. Sim, porque vender livros é uma arte. E logo
depois veio outra, instalando-se como a primeira na avenida que lembrava a
Liberdade. Não duraram muito: viriam a fechar, ambas, por falta de fregueses.
Talvez porque os donos não fossem bons artistas para vender livros ou, porque,
então como hoje, os livros interessassem apenas a uns poucos excêntricos que
não garantiam o necessário para as despesas da casa.
No
início dos anos noventa, uma das melhores casas da vila entrou em obras. “O
asilo vai transformar-se numa biblioteca”, dizia-se. O asilo era a casa da
Botica que, antes, durante décadas, servira de teto a miseráveis do concelho e que
iria agora receber livros. E assim nasceu na Póvoa de Lanhoso a primeira
biblioteca pública, cujas obras foram pagas pela câmara municipal e os livros,
uma vez mais, pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Esta
tornou-se sítio de convívios entre pessoas e livros. Com o passar dos anos, o
número de leitores foi crescendo, continuando, contudo, a ser poucos para
tantos livros ali depositados à mercê de quem os quisesse utilizar, como
almofadas de penas próprias para sonhar. De então para cá, cresceu sempre a
biblioteca da Póvoa em qualidade e tamanho, transformada em espaço de
confraternização entre quem escreve e quem lê. E vice-versa.
Hoje,
primeiro de julho de 2013 comemora-se mais um dia internacional das
bibliotecas. Mas comemora-se também o 20º aniversário da biblioteca municipal
da Póvoa de Lanhoso. Muita coisa mudou, para melhor, desde o dia em que este
espaço foi criado e posto à disposição da comunidade.
Terá
esta sabido aproveitá-lo convenientemente?
Não
sei a resposta. Sei do divertimento que representa a leitura, seja como momento
de puro entretenimento, seja como ferramenta para outros afazeres. E sei
daquilo que hoje temos à mão de semear, a dois passos de casa, ao contrário do
que acontecia quando, criança ainda, eu dava o meu reino do Curral por um cento
e meio de páginas impressas que me levavam ao Oeste americano, onde cavalgava
um sujeito de cabelos compridos e mosca no queixo, chamado Búfalo Bill e que
era um dos meus heróis preferidos.
Acho
que, entretanto, cresci alguma coisa. Por isso deixo de lado a saudade desses
heróis de antanho que às vezes ainda revisito nas leituras que faço, para
pensar na poesia de Ary, na prosa de Aquilino ou de Régio, nos diários de
Torga, nos contos infantis de Matilde Rosa Araújo que povoam as estantes da
minha biblioteca imaginária. E penso na frase entusiasmante de Borges ao escrever
que “o livro é uma extensão do cérebro humano”. Gosto da frase de Borges. O
livro é realmente a extensão do cérebro humano, fazendo às vezes com que seja o
cérebro a extensão do livro.
Por
isso gosto de bibliotecas e de livros. As bibliotecas sabem a sonho, enquanto
que os livros têm cheiro a Liberdade.