terça-feira, 3 de setembro de 2013

“5 de Setembro”, dia do reconhecimento

Por José Abílio Coelho | Historiador
In: Jornal Maria da Fonte de 05.09.2013



Os primeiros veículos de combate a incêndios dos bombeiros da Póvoa de Lanhoso


Nos inícios do século XX, fruto do empenho de um conjunto de “brasileiros” tocados pelo vírus da benemerência, o concelho da Póvoa de Lanhoso começou a receber algumas obras de interesse comunitário, entre as quais se contavam a construção de várias estradas, a edificação de escolas e igrejas ou o arranjo de espaços públicos.
De um grupo de cerca de duas dezenas de ex-emigrantes no Brasil que, um pouco por todo o concelho, investiram dinheiros próprios em favor de todos, e dentre os quais se destacaram sobretudo Manuel Joaquim Barbosa Castro, João António Pereira Pires, Domingos Fernandes do Vale, João António de Matos, os viscondes de Taíde e de Porto d’Ave ou Francisco Antunes de Oliveira Guimarães, tomou especial importância António Ferreira Lopes, sempre apoiado e muitas vezes animado até pelo coração gentil de sua esposa, D. Elvira Câmara Lopes.
Riquíssimo e sem filhos, este casal deu-se ao bem-fazer, dotando a terra de uma casa de espetáculos, de um bairro para operários, de um jardim público, à construção de estradas e à doação de muito dinheiro para a modernização de estruturas municipais, à sustentação de uma banda musical, à proteção de centenas e centenas de famílias pobres e à criação de prémios escolares, merecendo destaque o legado que, após a morte, possibilitou a construção da escola primária da vila, da estrada para o monte do Pilar e do edifício dos paços do concelho. Mas entre tantos e tantos benefícios destinados aos cidadãos povoenses, merecem destaque duas obras, as suas obras maiores: a fundação de um hospital (que, em 1928, levou à fundação da “Misericórdia e Hospital António Lopes” a qual tinha por especial missão a gestão desta unidade de saúde) e a criação da corporação de bombeiros da Póvoa de Lanhoso. Afinal, as instituições que, desde há muitas décadas, fazem do dia 5 de setembro de cada ano o dia do reconhecimento da obra desse casal ímpar da história da terra.
Nos finais do século XIX, já o jornal “Maria da Fonte” lamentava que as elites concelhias se não interessassem pela fundação de um corpo de bombeiros na vila da Póvoa pois, alegava-se aí, os fogos urbanos deviam ser combatidos por quem estivesse preparado para tal e não, como ia acontecendo, por magotes de populares que, apesar de toda a boa vontade, estragavam por vezes mais que o próprio fogo.
Por isso, quando a meio do primeiro lustro do século XX e na sequência de alguns fogos urbanos que destruíram integralmente algumas casas da vila da Póvoa António Lopes decidiu investir parte da sua fortuna para dotar a terra de uma casa de espetáculos (o Theatro Club, inaugurado em 5 de agosto e 1905), destinou o rés-do-chão do edifício à instalação de “uma casa da bomba”. Do seu bolso, pagou os materiais necessários, os fardamentos e os veículos de tração animal, tendo a parte operacional ficado sob a responsabilidade de seu irmão Emílio António, que foi primeiro comandante da “casa da bomba”. Os bombeiros nasceram, pois, entre 1904 e 1905, estando já presentes na festa de inauguração do Theatro Club, em agosto deste último ano.

Corpo ativo e comando em 1965
 A corporação desenvolveu trabalho meritório mas, aos poucos, a falta de interesse de alguns levou a que se esfriassem os ânimos de se manter. Em 1910, por falta de bombeiros e de vontade associativa, estava o corpo inativo pelo que, em 1912, ainda com dinheiro de António Lopes, foi a mesma refundada, transformando-se em Associação Humanitária. Henrique Rocha e Júlio Celestino foram encarregados de, enquanto comandantes, instruir os novos recrutas, ao passo que novos estatutos foram redigidos por um grupo de homens da terra, entre os quais se encontravam José Cândido Sampaio Rebelo, João da Silva Mouta, João Bastos e João António Vieira Antunes.
Esta, de 1912, não foi a única crise dos bombeiros da Póvoa. Mas foi talvez a mais importante, a ponto de, em vários documentos oficiais, nomeadamente em ofícios da administração do concelho, a fundação da corporação povoense ser dada como tendo acontecido neste ano.
 Os bombeiros da Póvoa ultrapassaram sempre todas as crises. E a corporação foi-se afirmando como uma das mais importantes e queridas associações de raiz local. Ao seu serviço, como soldados da paz, como dirigentes, como chefes e como comandantes e ajudantes de comando, passaram, ao longo deste mais de um século de existência, centenas e centenas de homens e de mulheres que sempre deram o melhor de si para que a corporação a todos pudesse servir com as necessárias condições. Homens e mulheres – os do passado e os do presente – que merecem a todos os povoenses um muito obrigado porque, mantendo viva a corporação, permitem a todos nós, cidadãos do concelho da Póvoa de Lanhoso, uma maior segurança: há sempre do outro lado do telefone uma voz que não pergunta a que partido, religião ou “raça” pertencemos quando lhes ligamos a pedir ajuda.

 Os Fundadores: António e Elvira Câmara Lopes
 
António Ferreira Lopes e sua esposa, D. Elvira Câmara Lopes

António Lopes, o grande benemérito povoense, nasceu no atual lugar de Pomarelho, vila da Póvoa de Lanhoso, em 16 de Abril de 1845. Emigrou para o Brasil ainda menino onde, no setor do comércio dos cereais, dos couros e especialmente no dos cafés, enriqueceu. Voltou a Portugal em 1888, riquíssimo, dando então início a uma obra de benemerência que marcou a sua terra para sempre. Sua esposa, D. Elvira Câmara Lopes, nasceu na cidade do Porto em 5 de setembro de 1856, onde sua mãe se encontrava acidentalmente. Pelo amor que votava a sua mulher, António Lopes escolhia sempre que possível este dia 5 de setembro para as inaugurações das obras, homenageando assim aquela que foi a sua companheira de uma vida. Por isso se continua hoje, e bem, a comemorar o 5 de setembro como o dia das duas instituições maiores que criou nesta terra – os Bombeiros e a Misericórdia.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Os livros têm cheiro a liberdade


José Abílio Coelho

Que me recorde, quando eu era criança não havia livrarias na Póvoa de Lanhoso. Talvez se vendessem livros numa qualquer outra loja; mas vendiam-se como quem comercializava fazendas, fios elétricos ou rolhas de cortiça. Para combater essa lacuna, vinha regularmente uma furgoneta da fundação Gulbenkian, trazendo livros que alimentavam a nossa necessidade. A minha e a de mais uma dezena e meia de crianças e alguns poucos adultos. Essa furgoneta, da qual me lembro (tal como dos seus dois simpáticos ocupantes) como se a tivesse guardado até hoje ao fundo do quintal da minha casa, estacionava junto à fachada sul da casa da Botica, no largo de terra batida que era, para nós, o centro do mundo – e onde íamos requisitá-los.
Liam-se com avidez, construíam-se sonhos de aventuras improváveis por dentro das capas de obras como Os Cinco, Tarzan ou Os Irmãos Hardy e, duas semanas depois, voltávamos para os trocarmos por outros. Essa foi a minha primeira biblioteca a sério.



Depois, após o dia a que Sophia chamou “inicial, inteiro e limpo”, abriu na terra uma pequena livraria. Era de um homem que viera de África, o senhor Santos, que se dedicou à arte de vender livros. Sim, porque vender livros é uma arte. E logo depois veio outra, instalando-se como a primeira na avenida que lembrava a Liberdade. Não duraram muito: viriam a fechar, ambas, por falta de fregueses. Talvez porque os donos não fossem bons artistas para vender livros ou, porque, então como hoje, os livros interessassem apenas a uns poucos excêntricos que não garantiam o necessário para as despesas da casa.
No início dos anos noventa, uma das melhores casas da vila entrou em obras. “O asilo vai transformar-se numa biblioteca”, dizia-se. O asilo era a casa da Botica que, antes, durante décadas, servira de teto a miseráveis do concelho e que iria agora receber livros. E assim nasceu na Póvoa de Lanhoso a primeira biblioteca pública, cujas obras foram pagas pela câmara municipal e os livros, uma vez mais, pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Esta tornou-se sítio de convívios entre pessoas e livros. Com o passar dos anos, o número de leitores foi crescendo, continuando, contudo, a ser poucos para tantos livros ali depositados à mercê de quem os quisesse utilizar, como almofadas de penas próprias para sonhar. De então para cá, cresceu sempre a biblioteca da Póvoa em qualidade e tamanho, transformada em espaço de confraternização entre quem escreve e quem lê. E vice-versa.
Hoje, primeiro de julho de 2013 comemora-se mais um dia internacional das bibliotecas. Mas comemora-se também o 20º aniversário da biblioteca municipal da Póvoa de Lanhoso. Muita coisa mudou, para melhor, desde o dia em que este espaço foi criado e posto à disposição da comunidade.
Terá esta sabido aproveitá-lo convenientemente?
Não sei a resposta. Sei do divertimento que representa a leitura, seja como momento de puro entretenimento, seja como ferramenta para outros afazeres. E sei daquilo que hoje temos à mão de semear, a dois passos de casa, ao contrário do que acontecia quando, criança ainda, eu dava o meu reino do Curral por um cento e meio de páginas impressas que me levavam ao Oeste americano, onde cavalgava um sujeito de cabelos compridos e mosca no queixo, chamado Búfalo Bill e que era um dos meus heróis preferidos.
Acho que, entretanto, cresci alguma coisa. Por isso deixo de lado a saudade desses heróis de antanho que às vezes ainda revisito nas leituras que faço, para pensar na poesia de Ary, na prosa de Aquilino ou de Régio, nos diários de Torga, nos contos infantis de Matilde Rosa Araújo que povoam as estantes da minha biblioteca imaginária. E penso na frase entusiasmante de Borges ao escrever que “o livro é uma extensão do cérebro humano”. Gosto da frase de Borges. O livro é realmente a extensão do cérebro humano, fazendo às vezes com que seja o cérebro a extensão do livro.
Por isso gosto de bibliotecas e de livros. As bibliotecas sabem a sonho, enquanto que os livros têm cheiro a Liberdade.

sábado, 16 de março de 2013

«A puta da cadela!»



Vitória da Silva Rodrigues anda nos 80 anos e habita na freguesia de Calvos (Póvoa de Lanhoso). Da quinta onde mora, que fora dos seus avós e cujas 'voltas' davam um romance de Camilo, herdou ela o apelido, 'Cajus', Vitorinha de Cajus. Ai, quem dera ao repórter ter bebido as palavras ouvidas e ter dez páginas para contar o que ouviu, vinte, cinquenta, que linda história poderia contar

Vitória da Silva Rodrigues, a Vitorinha de Cajús


























 

No quinteiro da casa ainda ciscam galinhas. E nos campos ao de ao pé da porta, passarada tonta recolhe apressada e barulhenta aos galhos onde vai passar a noite, que se chega a passos rápidos. É a Quinta de Cajús, no lugar de Nasce, freguesia de Calvos, conhecido por ali ter estado sediada a Banda de Música que ora é de toda a freguesia — Banda de Nasce, quem não se lembra...?
É na eira, entre o quinteiro enlameado da galinhagem e os campos onde chilreiam pardais, a dois passos das escadas de acesso aos cómodos da casa, que nos quedamos a conversar com os donos. «— Eu? Sou José Pires Pereira e vou fazer noventa anos», atira o proprietário, acabado de chegar de «apanhar uma gabela de erva...». Não é dali natural. «— Sabe? sou de Lama Longa, no Barroso... Vim cá comprar a quinta e topei com a mulher aqui...»
A esposa, Vitória da Silva Rodrigues, nos 80 anos, o rosto todo cavado de rugas como campo arado de fresco, segura as rédeas da conversa: «— Eu conto ao senhor, que conto melhor. Olhe, eu tinha 18 anos, e ele (aponta o marido) veio cá comprar esta quinta... Mas deixe-me ir atrás... a quinta era de meus avós; só que houve aqui uma questão entre minha mãe e uma minha tia e ficaram empenhados, sem dinheirinho, sabe? E por isso a quinta teve de ir à praça, coisas daquele tempo que o senhor não se recorda. E foi assim que ele veio cá comprá-la... Ele, lá na terra dele, andava no minério, no volfrâmio, que dava muito dinheiro. Foi então que um irmão dele veio comprar uma quinta a Pandosas (Vieira do Minho) e o povo lá informou-os que havia aqui em Nasce esta quinta, também à venda... E foi aí que a coisa se deu. Eu vou explicar a ver se o senhor entende: meus avozinhos iam vendar a quinta e coitadinhos, viam-se obrigados a ir servir, e a minha mãe também (o meu pai tinha ido para o Brasil e não dava sinais de vida...), e eu também! Vendia-se a quinta e tínhamos todos de ir servir... Mas ele (e volta a apontar o marido) estava aqui e alguém disse: «— Mas pode haver uma maneira de se remediarem as coisas, de vocês todos não irem servir... Há aquela menina (eu era filha única) tão linda... podia-se arranjar um casamento e vocês ficavam aqui...»
Vitorinha de Cajús mudou de expressão, calou-se durante alguns segundos, depois continuou: «—Não, é coisa que não pode ser! Eu não o queria, tinha cá a minha vida... Mas a minha mãe, e até mais os meus avós, que eram velhinhos, tinham que ir servir... Houve grandes empenhos, veio cá gente de peso para eu me casar com ele, e eu nã, eu não queria... não havia pessoa nenhuma que me virasse. Até que um dia o meu avô — que era a pessoa no mundo a quem eu mais amor tinha... — disse-me: "Então tu não queres casar, minha filha?" E eu disse de maneira nenhuma. E ele com as lágrimas nos olhos: "Eu só queria ter uma muda e tenho que sair daqui..." Aquilo custou-me tanto, tanto, tanto que eu disse: Já está paisinho! Ainda que eu case hoje e amanhã tenha que ir servir... você fica aqui. E depois então casei. Mas olhe que sempre a pensar que no outro dia a coisa acabava. Até que chegou o dia do casamento. Naquele tempo os comeres dos casamentos eram em casa, e veio para aí a família dele. E agora vou-lhe contar: pois os irmãos dele eram tão meus amigos, tão meus amigos... Depois comecei a ter filhos, eles não tinham mais que me fazer...»
Atrevo-me a interromper, para perguntar: quantos filhos?
A dona Vitória, Vitorinha de Cajús, enche o peito de ar, orgulhosa agora: «— Tenho dez filhos vivos, e morreram-me dois...» Admiro-me: dez filhos! Ele reafirma, confirmando as palavras com gestos largos de mãos: «— Dez filhos, estou-lhe a dizer! Olhe, dois estão no Brasil, dois na França, quatro no Luxemburgo e dois aqui...»
Sobre o assunto casamento atiro-lhe de raspão uma última pergunta: com oitenta anos, está arrependida do passo que deu? A resposta veio num repente: «— Nada! qual quê?!» E repete-se: «— Nada!...»

Tinha ido a Calvos em busca de umas informações sobre mestre Távora, grande pintor, que na primeira metade do século XX se estabeleceu na Póvoa de Lanhoso, e cuja esposa estava ligada por laços familiares à Quinta de Cajús, local onde, por isso mesmo, o casal de artistas esteve hospedado por largo tempo.
Vitorinha lembra-se bem dessa estada, embora fosse ainda bastante nova. «— A esposa dele era D. Elvira, uma senhora que se vestia muito bem, que se pintava muito... tinha uma cadelinha a quem dava tudo, chamavam-lhe Bionet. Saíam e levavam-na sempre com eles. Vou-lhe contar uma história: um dia estavam a sair e ela disse à minha avó (antigamente chamava-se maezinha à avó), ela disse à maezinha: "Hoje vou deixar a Bionet, você estime-ma, dê-lhe banhinho como de costume... Mal ela saiu a maezinha virou-se para mim: "Dá-lhe um banho acolá no tanque." E eu, pumba! dentro do tanque!... Quando a D. Elvira chegou a cadela estava sentada ali no alto das escadas, a chorar, parecia uma pessoa a contar o que se passou. E eu disse à maezinha: «A puta da cadela parece que queria contar que chafurdou no tanque...». E a maezinha: "Ó rapariga, deixa-a contar..."
Foram muitas as histórias que a Vitorinha nos contou sobre mestre Távora e D. Elvira — que viveram com todas as mordomias mas acabaram a pedir esmola nas ruas da vila! Tantas, tantas, que darão, um dia destes, para escrever outra matéria...
Antes, porém, gostaria de voltar a Calvos, a Cajús, para ouvir histórias contadas por essa mulher que me deixou encantado: hoje, poucos sabem contar histórias assim. E para além do mais, sempre embrulhadas numa gargalhada contagiante. «— Sabe», diz-me já a modos de despedida, «acho que hei-de morrer a rir...»
Deus a oiça, mas que demore a cumprir...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Texto para a “orelha” de um livro de António Celestino

À esquerda, na fotografia, António Celestino, no fim de um jantar no restaurante Bachus em Lisboa. Seguem-se-lhe Rosarinha e Fernando Assis Pacheco, Carminha Ruela Ramos, Zélia Gattai, José Abílio Coelho e Jorge Amado


António Celestino — António Simões Celestino da Silva, de seu nome completo — nasceu na Vila da Póvoa de Lanhoso no dia 24 de Maio de 1917, filho de Júlio Celestino da Silva e de D. Virgínia das Dores Simões Veloso de Almeida.
Em 1918 seu pai, comerciante local, ex-presidente da Câmara e comandante dos Bombeiros Voluntários morre, vitimado pela Pneumónica, doença que nesse mesmo ano ceifa milhares de vidas em Portugal. O pequeno António, com um ano de idade, é levado por D. Virgínia para a multisecular Casa do Ribeiro de São João de Rei, propriedade da família materna há quatro séculos. Ali dá os primeiros passos sob o olhar atento da mãe, das tias e do avô João José Simões Veloso de Almeida. Ali cresce, livre como os pássaros numa pequeníssima aldeia do interior minhoto.
A partir de 1923 frequenta a escola primária da vizinha freguesia de Monsul, depois de ter aprendido as primeiras letras com a mãe através da Cartilha de João de Deus. Em 1927, passa a estudar em Guimarães, onde frequenta o Liceu Martins Sarmento e, a partir de 1930, matricula-se e muda-se para o Liceu Sá de Miranda, em Braga.
Porém, o futuro do jovem, descendente de uma família com pergaminhos e enormes propriedades agrícolas, mas sem grandes dinheiros, não se adivinhava fácil e, apesar da «oposição do coração materno» (Celestino era filho único...) em 1939 parte para o Brasil onde, na cidade do Rio de Janeiro, começa a trabalhar como funcionário do “Banco Irmãos Guimarães”. Anos mais tarde e depois de muitos sacrifícios e canseiras, Celestino ascende ao cargo de director, transferindo-se para a Bahia, onde vai chefiar a filial daquela cidade.
Ali se casa com D. Cândida Rosa Leal, descendente de uma família tradicional baiana, união da qual nascem as suas três filhas: Virgínia Maria, Maria da Luz e Maria do Carmo, que tem também um percurso no campo das letras. Entretanto, é destacado para dirigir a sucursal de Recife, voltando depois à sede, no Rio de Janeiro. Mas o seu futuro estava traçado para a cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, onde voltaria meses depois para não mais se ausentar, a não ser, muito tempo depois, quando decidiu regressar definitivamente à sua terra natal.
Na Bahia, influenciado pelo mítico ambiente da antiga capital da província portuguesa do Brasil, António Celestino envolve-se na vida social e intelectual da cidade e faz amigos fraternais como Jorge Amado e Zélia Gattai, Vinícius de Morais, Carybé, Dorival Caymmi, Floriano Teixeira, Sonia Castro, Jorge Calmon, Mário Cravo, Raimundo de Oliveira, Carlos Bastos, José Calazans, Fernando Sabino, Ariovaldo Matos, Calazans Neto, Mário Cravo, Renato Martins, Arivaldo Boaventura, Mercedes Rosa, Pierre Verger, João Ubaldo Ribeiro ou o português Agostinho da Silva — que ali estava instalado como professor da Universidade Federal. Passa a escrever regularmente na «Tribuna da Bahia» crónicas sobre arte. Torna-se presidente do Museu de Arte Moderna da Bahia, do Hospital Português, do Instituto de Cegos, do Gabinete Português de Leitura, Conselheiro-Fundador do Instituto Brasileiro de Oftalmologia e Prevenção da Cegueira, Mesário da Ordem Terceira de S. Francisco, Curador da Fundação-Casa de Jorge Amado. A convite da direcção do jornal passa a ter espaço cativo no diário «A Tarde». Fruto das suas ligações a instituições culturais, encaminha para a Bahia grandes intelectuais portugueses de quem se torna amigo: Vitorino Nemésio, Gaspar Simões, Jorge de Sena, Fernando Namora, David Mourão-Ferreira, J. M. Santos Simões, Alçada Baptista... Pelas suas casas baiana e minhota passam grandes escritores, pintores, músicos como Gabriel García Márquez, Mário Vargas Llosa, Fernando Assis Pacheco, Júlio Pomar, Nuno Lima de Carvalho, José Hermano Saraiva, George Calmon, J. M. Santos Simões, Luís Forjaz Trigueiros, Narciso José, Luís Macedo Costa, Miguel Calmon, Cargaleiro, Dário Castro Alves, Rodolfo Teixeira, José Dias Humberto Castro Lima, Norberto Odebrechet, José Franco, Raimundo Perazzo, Thales Azevedo, Vivaldo Costa Lima, Reynaldo dos Santos, José Narciso, Neves e Sousa ou Frederico de Freitas.
Convidado para a direcção do Banco Económico da Bahia, introduziu no Brasil o financiamento bancário para a compra de obras de arte. Viúvo e algo cansado, retira-se da banca, em 1985, regressando a Portugal onde, na Velha Casa do Ribeiro, que entretanto adquiriu ao tio Padre José Carlos, passa a residir. Em férias, volta à Bahia várias vezes, onde vem a casar, em segundas núpcias, com a professora Maria da Conceição Oliveira. É personagem, entre outros, de vários romances de Jorge Amado.

José Abílio Coelho, Maio de 1997