quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O rosto de Margarida


Texto: José Abílio Coelho
Desenhos: Domingo



                                     Em memória de minha Mãe e a todos aqueles que, algum dia,
                                     conviveram de perto com alguém que padeceu da doença de Alzheimer 


Soaram na torre quatro badaladas.
Àquela hora o sol andava ainda por sítios onde Ângelo nunca fora. Nem sabia como eram. Por vezes, só muito por vezes, surgia-lhe uma ponta de curiosidade: de que tamanho seria o mundo? Talvez de dez aldeias como a sua, ou de vinte. Ou talvez nem fosse assim tão grande.
Ele nunca passara para o lado de lá do rio! E não passara para a outra margem por lhe terem dito que o rio era fundo como o inferno e que já levara na corrente homens e mulheres, e crianças, e cabras e vacas, e até casas inteiras que nunca mais foram vistas. E para o outro lado da aldeia, para aquele de onde o sol se levanta? Para aí, o máximo que vira fora o Monte Grande que ficava para além daqueloutro onde em rapaz subia para levar o pequeno rebanho de cabras a pastar. Olhava-o enquanto as cabras rapavam a flor ao mato e pensava que o mundo acabava ali, onde ficava o monte que estava para lá daquele. Devia ser lá, atrás do Monte Grande, o ninho do sol.


Na verdade, o tamanho do mundo também não lhe interessava muito. Sempre vivera na aldeia e era lá que queria continuar a viver. A aldeia era o seu mundo e quando morresse (como o pai ou como o avô Sebastião, que fora o homem mais velho que conhecera e aquele que possuíra o maior bigode de que tinha memória, e também o homem mais amigo que tivera desde sempre), sabia muito bem que pedaço de terra lhe tocaria ocupar por detrás da igreja, sob aquela pedra antiga e tosca ao pé do portal de ferro.
Enquanto divagava, deitado no escuro, ouviu o sino bater de novo, uma só badalada desta vez.
«Quatro e meia», pensou.
Levantou-se, enfiou as calças que ajustou à cintura com um atilho de cerda, vestiu por sobre as camisolas com que dormia a samarra de gola de pele de raposa que herdara do pai e meteu os pés, sem meias, aos socos de madeira e couro.
A mulher só sentiu o movimento quando ele já saía quarto fora. Chamou-o:
— Ó, homem, aonde vais…?
Da ombreira, virou ligeiramente a cabeça para lhe responder:
— Apor o gado! Não sabes que tenho um carreto para fazer? E que quando chegar do carreto tenho que ir buscar a dorna grande que emprestei ao primo Sebastião? Dias não são anos!...
A mulher, ainda meio estremunhada, sentou-se na cama.
— Que gado?! Que dorna, homem?! Não sabes que já não temos gado?!... Não sabes que o primo Sebastião já cá não está?! Ó, homem… deita-te e dorme, que hoje é dia de Natal! Até é pecado sair da cama tão cedo...
Ele nem a escutou. Passou pela cozinha às escuras, saiu para a barra e desceu ao quinteiro.
Os socos matraqueavam nas escadas de granito secular. Nem sentiu a brisa gelada a agredir-lhe a face por barbear. Tudo — a casa, o quinteiro, a aldeia inteira — se encontrava ainda sob uma pesada cortina de escuridão.
De combinação, os ombros cobertos por uma velha mantinha, a mulher saiu-lhe à barra trazendo na mão uma candeia de chama tremelicante.
Ele viu-a ali plantada, imóvel, sem fala, embora a contraluz provocada pela chama apenas lhe permitisse divisar os contornos de uma figura esguia, irreconhecível.
— Pareces uma alma penada — disse-lhe ele, dando uma gargalhada.
— Ó, homem, volta para a cama. Não vês que já não temos gado?! Não vês que agora são os novos caseiros que tratam da quinta e que só aqui moramos porque os patrões são uns santos e nos deixaram ficar?...
Escutou-lhe as palavras, transparentes como água, mas nada entendeu do que diziam. Que caseiros novos?! Que patrões?!
Um galo, ali próximo, desperto pelas vozes de ambos cantou a madrugada. Ângelo sorriu. Ainda se lembrava do que era um galo. Chegou-se ao carro-de-bois arrumado a um lado do quinteiro e procurou o ferro: o ferro, aquele com que se trava o jugo...
— Ó, mulher, sabes do ferro?
— Qual ferro, homem?!
— Aquele…
— Mas qual ferro, homem?
— O ferro, carano! O ferro de botar ao jugo!
— O chavelhão! E para que o queres tu?!
Para apor o gado. Já te disse que preciso de ir por um carreto e depois a casa do Sebastião buscar a dorna grande. Ele é que já ma devia ter cá trazido... E olha, acorda os moços para me deitarem uma mão.
— Os moços estão longe... Coitados...
— Vá, vai lá dizer-lhes que estou à espera.
A mulher desistiu; virou-lhe as costas. Sentia uma brisa gelada que se lhe entranhava nos ossos. Tremia. Tremia de frio e de medo. O homem estava a ficar desmiolado.


Entrou na cozinha pobre, com uma lágrima sem força a molhar-lhe apenas um lado da face. O saco oposto estava seco. Reparou que, por sob a cinza, ainda havia umas brasas vivas da fogueira da noite anterior, a fogueira da Consoada, até há poucos anos motivo de alegria, agora nada mais que uma fogueira igual às de todos os dias de Inverno. Foi ao cesto e deitou uma mão-cheia de chamiça no borralho. A custo, debruçou-se sobre as brasas e soprou. Uma, duas, três vezes, até que a chamiça estalou em chamas. Usou uns guiços para manter o fogo alto e depois procurou uma canhota e colocou-a com cuidado sobre a chama, e depois outra e mais outra. O fogo aceso era a única alegria a casa.
Lá fora, Ângelo pigarreou. Voltou a subir a escada de granito antigo e entrou na cozinha, coberta de telhas pretas como a morte. A mulher estava em pé frente à fogueira que fazia tremelicar sombras nas paredes, de costas para a porta e para ele. Ficou parado, a olhá-la, como se ali estivesse uma desconhecida... Já não se lembrava qual era o nome dela! E assim, pelas costas, nem os contornos do rosto recordava, embora tivessem partilhado sessenta anos de vida e gerado onze filhos.
Foi ela, sentindo-o, quem falou sem se voltar:
— Ó, homem, não andas bom...
— Quê!
— Trocas tudo, não te lembras das coisas. Passas a vida a falar do que aconteceu há cinquenta anos e não te lembras do que falámos ontem!
Ângelo virou-lhe as costas, em irado silêncio.
Voltou a sair para a barra, a descer as escadas, até se deter a meio do quinteiro. Ela, a contragosto, veio até à porta para ver o que ele iria fazer.
O relógio da torre deixou cair cinco badaladas.
— Ó homem, anda-te deitar mais um bocado, ou anda-te sentar no escano, ao pé do lume. Este frio mata-te!
— Estás é douda. Já te disse do carreto que tenho para fazer agora de manhã. E que quando voltar vou pela dorna à casa do primo Sebastião. Parece que estás é surda, que não ouves bem o que te dizem!
— É de noite, anda-te deitar mais um bocado?
— Não me quero deitar. Não me fales nisso!
— Mas vais ficar aí, em pé, a fazer o quê? Pelo menos vem para aqui, para ao pé do lume.
E ele, num rompante:
— Olha, queres saber? Vou mas é à missa pelo meu avô Sebastião. — Deu nova gargalhada. — Vou mas é à missa pelo homem dos bigodes...
Saiu para o caminho batendo o enorme portão com estrondo, sem dar tempo que a mulher lhe dissesse mais nada.
Ouvia-se agora vários galos a cantar. E cães ladravam na aldeia, como que protestando por alguém os ter privado do sossego matinal.
Ângelo caminhou com pressa no chão empedrado, os socos de madeira resvalando no granito tosco, soando a oco. Passou junto à igreja que estava às escuras, ao lado do cemitério que lhe ficava ao pé e do cruzeiro que a procissão de São Tiago costumava contornar para voltar atrás no dia da festa de Julho, e prosseguiu a caminhada como se partisse para uma demorada viagem por terras cuja dimensão desconhecia. Ele, que nunca fora para além do monte que ficava antes do último monte do mundo e nunca se atrevera a passar para o lado de lá do rio!


Ali ao pé cantou um galo. Os cães continuavam a ladrar, uns mais perto, outros ao longe. Aos galos vá que não vá, ainda os suportava. Mas o ladrar dos cães enervava-o. Ainda se lembrava do velho Malhado, raça de cão aquele, bom para desentocar lebres e coelhos que ele atacava a golpes de cajado... Que lhe terá acontecido, que nunca mais o viu ou ouviu falar nele? Mas o Malhado não ladrava: farejava com graça, de orelhas erguidas ao alto, e dava sinal de lebre com um simples latido e um curto abanar de cauda. O Malhado não era como estes cães estúpidos de agora que não se calam um só segundo...
Para se distrair dos latidos que o irritavam, voltou a pensar: De que tamanho será o mundo? Talvez de vinte aldeias como esta. Ou de cinquenta, ou de cem?! Talvez o mundo até fosse grande. Há muitos anos ouvira o padre Bartolomeu dizer, num sermão, que nem os padres tinham todos lugar reservado no céu. E o céu, telhado do mundo cujo tamanho desconhecia, era grande: bem o via todo estrelado por cima da cabeça, poisando as pontas além do rio e por detrás do Monte Grande! Voltou a pensar no sermão do padre Bartolomeu: Um padre por aldeia e não terem todos lugar no céu?! Era estranho! Então deviam ser mesmo muitas as aldeias, e talvez o mundo fosse até maior que mil aldeias como a sua. Mil, que raio de número! Quanto seria mil? Ouvira muitas vezes dizer mil, mas não fazia ideia quanto era mil. Também nunca tivera quem lhe ensinasse letra ou algarismo...
De repente, estacou na sua caminhada. E o silêncio que se fez tornou o ladrar dos cães ainda mais irritante. Porque havia parado? Que estranho: por muito esforço que fizesse, não conseguia lembrar-se de como eram os filhos... Também não se lembrava do rosto da mulher! Fez um esforço para o recordar, mas nem assim: não se recordava das feições, nem de como eram os olhos, nem da cor do cabelo... Nada, nada, nada! Abstraído, voltou a caminhar, lentamente, cogitando sobre as razões daquela estranha ausência de tudo! E os pequenos, por onde andariam os pequenos? Quantos pequenos?...
Deu-se então conta de que, tamanqueando, tinha atravessado a aldeia inteira, e de que escutava agora, nitidamente, as águas do rio que galgava apressado para os lados onde o sol costuma pôr-se. Sentiu frio. Reparou que o céu perdia a cor de fuligem e ajeitou ao pescoço a gola de pele de raposa do velho casaco. Continuou a caminhar: o som dos galos a cantar e o ladrar dos cães chegava-lhe agora de longe. Sem saber como, encontrava-se à margem do rio, largo, largo, largo. Imenso e colérico, o movimento ondulante das águas barrentas já descortinável no desnovelar da noite.


O sino, lá muito para trás, voltou a badalar horas, mas nem se deu ao trabalho de as contar. O rio estava ali, à sua frente. O rio!
«Se eu conseguir atravessar o rio, vai ser hoje que vou saber de que tamanho é o mundo, descobrir se é realmente tão grande que seja capaz de dar igreja a tantos padres, tantos, tantos que nem sequer cabem no céu», pensou. Lembrava-se do padre Bartolomeu lhe ter ensinado o catecismo, mas não se lembrava do que tinha acontecido ao padre Bartolomeu. Terá tido um cantinho do céu? Terá o padre Bartolomeu algum dia atravessado o rio? O rio, ali estava o rio, o que existiria para além dele?
Já iria ver...


Nem se despiu nem descalçou os socos. Pela ladeira do campo do moinho velho entrou na água, que começou a sugá-lo, lentamente. Ainda tentou amarrar-se a uns ramos tombados no leito, mas... estava pasmado: como fora esquecer-se de quantos eram os pequenos, do rosto da mulher, e da cor do seu cabelo, e do nome e de como eram os seus olhos! Lembrar, lembrava-se bem era das feições daquela rapariga com quem jogava à piúrra em criança, que lhe disputava os pinhões retirados às pinhas do monte que secava ao pé da lareira, aquela de há muitos anos, aquela... filha dos patrões da quinta que seus pais traziam de terça, e que depois partiu para nunca mais voltar. Dessa, lembrava-se ele bem: os olhos da cor da alface, o cabelo ondulado e loiro como campos de centeio pelo Maio, o sorriso alegre, a palavra franca. E nem do nome dela se esquecera: chamava-se Margarida, e tinha uns dentes tão brancos como as alvas toalhas dos altares da igreja...

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

António e Maria



Quarenta anos e António nem se lembraria do aniversário, não se desse o caso de Maria lho ter recordado no fim do prato de sopa que jantaram, quando colocou no centro da arca de madeira que lhes servia de mesa um prato de línguas-de-gato e uma garrafa meia de vinho do Porto e dois cálices. Comeram dois docinhos cada um e beberam cada seu cálice de Porto sem uma palavra a mais ou a menos que as palavras de todos os dias.
Ele perguntou:
— O menino?
— Já o deitei. Está frio.
— Podia comer um docinho connosco.
— Já lhe dei. Mas estava cansado e deitei-o.
Olhou-o, com amor.
— Como foi o teu dia, hoje?
— Como o de ontem.
— Muito trabalho?
— Como sempre. Os patrões não pagam a preguiçosos.
— Estás cansado?
— Um bocado. E tu?
— Doem-me as costas. Consegui fazer as três camisas. Custou, mas consegui.
— Pagaram-te?
— Não, mandaram-me passar lá domingo, no fim da missa. E a ti?
— Também não.
— Não te disseram nada?
— Nada.
— Viram-te sair?
— Viram. Fui por lá, dizer até depois, a ver se metiam a mão ao bolso, mas não me disseram nada e eu tive vergonha de pedir que me pagassem.
Maria empurrou o prato de línguas-de-gato para a frente dele.
— Come mais uma.
— Não me apetece.
— Come.
— Não quero. Guarda-as para amanhã.
— Hoje é que fazes anos.
— Mas agora não quero. Vou-me deitar.
— Vai. Vou arrumar e já me deito também.
— Deixa isso para amanhã.
— Não, não. Não quero deixar a loiça suja. E amanhã preciso de me levantar cedo. Tenho aí uma blusa para fazer. Dava jeito se me pagassem logo...
— É, pode ser. Mas o povo parece que pensa que não comemos. Que não temos a nossa vida.
— As pessoas não sabem...
— Sabem, sabem mas vão adiando.
— Vai mau para todos...
Ela levantou-se. Pegou nos dois pratos vazios, encaminhou-se para a banca. Ele ficou sentado.
— Precisava de saber da minha mãe.
— Passas por lá amanhã.
— Amanhã tenho que avançar cedo. Vou para o Pinheiro, já combinei com o patrão.
— Deixa estar que eu, a meio da manhã, vou lá vê-la. E perguntar se é preciso alguma coisa.
— Fazes isso?
Ela sorriu um sorriso triste.
— Faço, sabes que sim.
— És um anjo.
— Ora essa, faço pelos teus o que tu farias pelos meus.
— É pena não termos recebido. Podias levar-lhe alguma coisa.
— No domingo vamos receber os dois.
— Daqui até domingo...
— Olha, posso levar-lhe essas seis línguas-de-gato.
— Está bem. Faz isso.
Maria lavava a loiça. Ele levantou-se, ficou parado no meio da cozinha. Depois disse:
— O Manuel voltou-me a falar.
— Outra vez? E tu?
— Disse-lhe que não, mas fiquei a pensar.
— Não vás.
— Podia ganhar mais, bastante mais. Passamos mal, o dinheiro é sempre contado. O menino podia ter uma vida melhor...
— Deixa lá.
— Deixa-me pena. O Manuel lá veio outra vez de férias. Traz carro! Diz que vai começar a fazer a casinha.
— Não penses nisso. Antes pobres e juntos que ricos e um para cada lado.
— Tens razão. Domingo chega depressa.
Foi para o quarto. Benzeu-se e deitou-se. Quando a mulher acabou de lavar a loiça e ocupou o lugar a seu lado, na cama, António dormia.


 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Liberdade

O político, de fato completo e grava listrada fê-lo parar na rua, para lhe perguntar:
— Então, sempre queres o emprego que te mandei dizer?!
— Eu já trabalho.
— Onde?
— Nas obras.
— Pá, um emprego melhor.
— Mas que emprego?
O do fato olhou-o, já entediado por tanta pergunta.
Mesmo assim, falou com meiguice:
— Um emprego numa repartição, coisa limpa... Que habilitações tens?
— Habita...?
— Sim, que escolaridade?
— Ó, mal sei ler.
— E escrever?
— Pouco mais que o meu nome.
— Pá, arranja-se sempre alguma coisa. Aparece.
— E o que vou ter de dar em troca?

sábado, 1 de dezembro de 2012

A única vez na vida que andei num Ferrari



O embaixador Dário Castro Alves


Em Fortaleza (Brasil), sua cidade natal, onde habitou, doente, nos últimos anos da sua vida, morreu no dia 6 do mês de Junho (2010) o embaixador Dário Moreira de Castro Alves, querido amigo.
Autor de vários livros onde abordou, especialmente, costumes e exemplos gastronómicos na obra de Eça de Queirós, e com vasta matéria publicada na imprensa, onde a temática da história brasileira e portuguesa era presença constante, para além de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará, Dário Castro Alves era académico de mérito da Academia Portuguesa da História e foi presidente do conselho de Curadores da Fundação Luso-Brasileira e director do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Internacional de Lisboa. Depois de ter terminado a sua carreira diplomática em Lisboa, após ter sido embaixador do Brasil em Nova Iorque (ONU), Buenos Aires, Moscovo e Roma, Dário Castro Alves decidiu ficar, por vários anos ainda, a residir em Lisboa.
Casado em primeiras núpcias com a romancista Dinah Silveira de Queirós, o embaixador Dário Castro Alves viria, depois de enviuvar, a contrair segundo matrimónio com D. Rina Bonadies Castro Alves — quadro superior da embaixada do Brasil e também autora de vários trabalhos publicados em livro.

Conheci o embaixador Dário Castro Alves pela mão amiga de António Celestino, numa tarde em que, juntos, assistíamos em Lisboa à apresentação de mais um livro de Jorge Amado. Foi, tal como D. Rina, duma simpatia extrema e, sendo eu um jovem provinciano e inculto, prestou-me tamanha atenção que parecia estar a lidar com um igual entre iguais. Mais tarde, durante a refeição em conjunto, falou-me da sua vida de diplomata e das vezes que, com convites sobrepostos, se via obrigado a jantar duas e três vezes na mesma noite, a sair de uma recepção para se fazer presente noutra, regressando uma ou duas horas depois à primeira.
— Dário nasceu para ser embaixador — dizia-me D. Rina com um sorriso, enquanto o marido ia contando as suas andanças de recepção em recepção. — É capaz de ir a três jantares na mesma noite, fazendo que come sem comer e regressando a casa com fome...
Daí em diante, encontrei-me com ele e com D. Rina várias vezes e nas mais diversas circunstâncias, sentindo sempre, da parte de ambos um respeito e até uma espécie de protecção a que, confesso, não estava muito habituado. Apesar de eu seu o jovem da aldeia distante da capital, filho de gente do mais humilde que havia, Dário Castro Alves fazia sempre o favor de me convidar para várias iniciativas culturais que organizava e, entre elas, para os jantares temáticos que tinham ementas retiradas das obras de Eça de Queirós, de seu compatriota Jorge Amado, ou de Camilo Castelo Branco.
Quando publiquei o meu primeiro livrinho, «Contos do Outro Mundo», péssimo trabalho de principiante, escreveu uma recensão que publicou em vários jornais, recensão que me fez inchar de vaidade de tanta coisa bonita que dizia a respeito dos três continhos que compunham o pequeno volume.

Um dia, telefonei-lhe, pedindo-lhe se vinha à Póvoa de Lanhoso. António Celestino, meu conterrâneo e seu amigo de muitos anos, apresentava o livro «Contos em Forma de Cereja», completava oitenta anos, a câmara pretendia fazer-lhe uma homenagem colocando o seu autógrafo no monumento «Às Gentes das Artes e das Letras das Terras de Lanhoso» que o presidente Tinoco de Faria, em boa hora, decidira criar e mandar implantar à entrada da Casa da Botica.
António Celestino tem uma profunda ligação ao Brasil e à sua Cultura e a presença do embaixador do Brasil, embora já aposentado, prestigiaria o poeta de S. João de Rei. Dário Castro Alves disse imediatamente que sim. Pagou do seu bolso a viagem de avião de Lisboa para o Porto, pedindo-me apenas que o mandasse buscar. Eu próprio o fui esperar e, como a cerimónia só estivesse agendada para a tarde e noite, fomos, eu e o embaixador, almoçar ao restaurante do Victor, em S. João de Rei.
Conversávamos, sentados numa mesa do fundo da esplanada do restaurante, eu com um fato claro, ele ataviado no seu clássico terno cinzento com casaco de trespasse e com gravata preta sobre camisa branca. Numa enorme mesa, ao lado da nossa, almoçava um grupo enorme de empresário, creio que os donos do então recém aberto cash & carry Arminho. Gente de muito dinheiro, haviam convidado o célebre repentista e cantador ao desafio Cachadinha para animar o almoço.
A dada altura, estava o nosso almoço quase no fim, provávamos já as célebres sobremesas da casa depois de nos termos deliciado com o bacalhau, o Victor, também ele um diplomata, disse ao Cachadinha fosse à nossa mesa cantar qualquer coisa, pois almoçavam ali o senhor embaixador do Brasil e um amigo. O cantador aproximou-se, dando aos foles da concertina e atirou uma quadra, já não me recordo sobre o quê. Era algo engraçado porque rimos todos, nós, e os da mesa que estava ao nosso lado. Cachadinha cantou mais duas ou três quadras e, a dada altura, para rematar, engenhou mais ou menos isto: «Quem canta usa a garganta / e quem vê dá uso a vista. / Com vista a continuar / Vou cantar prà outra mesa / e por isso me despeço. / Deixo as minhas saudações / ao senhor embaixador / e mais a seu motorista».
Um fecho bem arrancado pelo repentista de Vila Verde, não se tivesse dado o lamentável episódio de, ao referir-se ao embaixador, ter feito uma vénia virado para mim, enquanto que, ao referir-se ao motorista, dirigia a saudação ao embaixador Dário Castro Alves.
Eu fiquei corado de vergonha, mas o embaixador, com aquele seu jeito característico, riu do engano e conclui: «Às vezes preferia mesmo ser o motorista...»
O Victor é testemunha desta situação nada diplomática, que relembra muitas vezes.

A minha amizade com o embaixador Dário Moreira de Castro Alves manteve-se por longos anos e, mesmo depois de, pela segunda vez viúvo e já doente, se ter retirado para o Brasil, mantivemos contacto permanente. Chegou-me a apresentar um irmão, Ivan Moreira de Castro Alves — um excelente contista, por sinal.

Quando apresentou um dos seus mais recentes livros cuja temática voltava a ser a obra de Eça de Queirós, desta vez a bebida na obra do autor de «A Cidade e as Serras», fui com António Celestino ao Porto assistir ao lançamento. Creio que a apresentação foi pelo entardecer de uma sexta-feira, num palácio sobre o rio Douro. Admirei a forma como, entre cerca de uma centena de amigos presentes, conseguia dar atenção a todos: a mesma atenção equilibrada e serena, "milagre" que, talvez não seja pecado dizê-lo, só um diplomata era capaz fazer.
Nessa mesma tarde, convidou-nos, a António Celestino e a mim, para um almoço. «Vai ser na Póvoa de Lanhoso», disse. «Quero que Sãozinha [esposa de Celestino] também esteja presente, e vou convidar ainda um amigo que reside em Felgueiras, que gostaria viesse almoçar connosco».
Marcámos o almoço para o domingo seguinte, no restaurante do monte do Pilar. Dário Castro Alves queria visitar o castelo e aquele, para o efeito, era o restaurante indicado. Combinámos encontrar-nos no alto do Pilar no domingo pelo meio dia, com ele viriam D. Rina e o motorista do consulado do Porto, destacado para o transportar enquanto estivesse no Norte.
No sábado, o embaixador telefonou-me a pedir um favor: o seu amigo de Felgueiras viria almoçar connosco, mas não sabia onde era o restaurante. De forma que, pedia-me, se eu pudesse esperá-lo no centro da vila ao meio-dia exacto, iria com esse seu amigo até ao restaurante. Disse que sim, mas como iria conhecer o seu amigo? «Eu já lhe disse como você é e, se esperar mesmo no centro, ao pé da estrada, ela há-de reconhecê-lo», respondeu o embaixador.
No domingo, uns minutos antes do meio-dia eu estava no centro da vila, em local de passagem dos carros que viessem do lado de Fafe. Eu esperava um Mercedes, talvez um BMW, mas eis que, de repente, surge do lado do Largo António Lopes, foi um vermelhíssimo e reluzente Ferrari! Vinha muito devagar e parou ao pé de mim. Pelo vidro aberto, o senhor de meia-idade que o conduzia, perguntou-me: «É fulano?» Disse que sim. «Então vamos...» Entrei, então, pela primeira e única vez na minha vida num Ferrari. Até isso fiquei a dever ao Senhor Embaixador Dário Castro Alves, que, sendo quem era, me tratou sempre como se eu fosse o que não sou: alguém importante...
Paz à sua alma, querido amigo.