Quarenta anos e António nem se lembraria
do aniversário, não se desse o caso de Maria lho ter recordado no fim do prato
de sopa que jantaram, quando colocou no centro da arca de madeira que lhes
servia de mesa um prato de línguas-de-gato e uma garrafa meia de vinho
do Porto e dois cálices. Comeram dois docinhos cada um e beberam cada seu
cálice de Porto sem uma palavra a mais ou a menos que as palavras de
todos os dias.
Ele perguntou:
— O menino?
— Já o deitei.
Está frio.
— Podia comer um
docinho connosco.
— Já lhe dei. Mas
estava cansado e deitei-o.
Olhou-o, com
amor.
— Como foi o teu
dia, hoje?
— Como o de
ontem.
— Muito trabalho?
— Como sempre. Os
patrões não pagam a preguiçosos.
— Estás cansado?
— Um bocado. E
tu?
— Doem-me as
costas. Consegui fazer as três camisas. Custou, mas consegui.
— Pagaram-te?
— Não,
mandaram-me passar lá domingo, no fim da missa. E a ti?
— Também não.
— Não te disseram
nada?
— Nada.
— Viram-te sair?
— Viram. Fui por
lá, dizer até depois, a ver se metiam a mão ao bolso, mas não me disseram nada
e eu tive vergonha de pedir que me pagassem.
Maria empurrou o
prato de línguas-de-gato para a frente dele.
— Come mais uma.
— Não me apetece.
— Come.
— Não quero.
Guarda-as para amanhã.
— Hoje é que
fazes anos.
— Mas agora não
quero. Vou-me deitar.
— Vai. Vou
arrumar e já me deito também.
— Deixa isso para
amanhã.
— Não, não. Não
quero deixar a loiça suja. E amanhã preciso de me levantar cedo. Tenho aí uma
blusa para fazer. Dava jeito se me pagassem logo...
— É, pode ser.
Mas o povo parece que pensa que não comemos. Que não temos a nossa vida.
— As pessoas não
sabem...
— Sabem, sabem
mas vão adiando.
— Vai mau para
todos...
Ela levantou-se.
Pegou nos dois pratos vazios, encaminhou-se para a banca. Ele ficou sentado.
— Precisava de
saber da minha mãe.
— Passas por lá
amanhã.
— Amanhã tenho
que avançar cedo. Vou para o Pinheiro, já combinei com o patrão.
— Deixa estar que
eu, a meio da manhã, vou lá vê-la. E perguntar se é preciso alguma coisa.
— Fazes isso?
Ela sorriu um
sorriso triste.
— Faço, sabes que
sim.
— És um anjo.
— Ora essa, faço
pelos teus o que tu farias pelos meus.
— É pena não
termos recebido. Podias levar-lhe alguma coisa.
— No domingo
vamos receber os dois.
— Daqui até
domingo...
— Olha, posso
levar-lhe essas seis línguas-de-gato.
— Está bem. Faz
isso.
Maria lavava a
loiça. Ele levantou-se, ficou parado no meio da cozinha. Depois disse:
— O Manuel
voltou-me a falar.
— Outra vez? E
tu?
— Disse-lhe que
não, mas fiquei a pensar.
— Não vás.
— Podia ganhar
mais, bastante mais. Passamos mal, o dinheiro é sempre contado. O menino podia
ter uma vida melhor...
— Deixa lá.
— Deixa-me pena.
O Manuel lá veio outra vez de férias. Traz carro! Diz que vai começar a fazer a
casinha.
— Não penses nisso.
Antes pobres e juntos que ricos e um para cada lado.
— Tens razão.
Domingo chega depressa.
Foi para o
quarto. Benzeu-se e deitou-se. Quando a mulher acabou de lavar a loiça e ocupou
o lugar a seu lado, na cama, António dormia.