terça-feira, 4 de dezembro de 2012

António e Maria



Quarenta anos e António nem se lembraria do aniversário, não se desse o caso de Maria lho ter recordado no fim do prato de sopa que jantaram, quando colocou no centro da arca de madeira que lhes servia de mesa um prato de línguas-de-gato e uma garrafa meia de vinho do Porto e dois cálices. Comeram dois docinhos cada um e beberam cada seu cálice de Porto sem uma palavra a mais ou a menos que as palavras de todos os dias.
Ele perguntou:
— O menino?
— Já o deitei. Está frio.
— Podia comer um docinho connosco.
— Já lhe dei. Mas estava cansado e deitei-o.
Olhou-o, com amor.
— Como foi o teu dia, hoje?
— Como o de ontem.
— Muito trabalho?
— Como sempre. Os patrões não pagam a preguiçosos.
— Estás cansado?
— Um bocado. E tu?
— Doem-me as costas. Consegui fazer as três camisas. Custou, mas consegui.
— Pagaram-te?
— Não, mandaram-me passar lá domingo, no fim da missa. E a ti?
— Também não.
— Não te disseram nada?
— Nada.
— Viram-te sair?
— Viram. Fui por lá, dizer até depois, a ver se metiam a mão ao bolso, mas não me disseram nada e eu tive vergonha de pedir que me pagassem.
Maria empurrou o prato de línguas-de-gato para a frente dele.
— Come mais uma.
— Não me apetece.
— Come.
— Não quero. Guarda-as para amanhã.
— Hoje é que fazes anos.
— Mas agora não quero. Vou-me deitar.
— Vai. Vou arrumar e já me deito também.
— Deixa isso para amanhã.
— Não, não. Não quero deixar a loiça suja. E amanhã preciso de me levantar cedo. Tenho aí uma blusa para fazer. Dava jeito se me pagassem logo...
— É, pode ser. Mas o povo parece que pensa que não comemos. Que não temos a nossa vida.
— As pessoas não sabem...
— Sabem, sabem mas vão adiando.
— Vai mau para todos...
Ela levantou-se. Pegou nos dois pratos vazios, encaminhou-se para a banca. Ele ficou sentado.
— Precisava de saber da minha mãe.
— Passas por lá amanhã.
— Amanhã tenho que avançar cedo. Vou para o Pinheiro, já combinei com o patrão.
— Deixa estar que eu, a meio da manhã, vou lá vê-la. E perguntar se é preciso alguma coisa.
— Fazes isso?
Ela sorriu um sorriso triste.
— Faço, sabes que sim.
— És um anjo.
— Ora essa, faço pelos teus o que tu farias pelos meus.
— É pena não termos recebido. Podias levar-lhe alguma coisa.
— No domingo vamos receber os dois.
— Daqui até domingo...
— Olha, posso levar-lhe essas seis línguas-de-gato.
— Está bem. Faz isso.
Maria lavava a loiça. Ele levantou-se, ficou parado no meio da cozinha. Depois disse:
— O Manuel voltou-me a falar.
— Outra vez? E tu?
— Disse-lhe que não, mas fiquei a pensar.
— Não vás.
— Podia ganhar mais, bastante mais. Passamos mal, o dinheiro é sempre contado. O menino podia ter uma vida melhor...
— Deixa lá.
— Deixa-me pena. O Manuel lá veio outra vez de férias. Traz carro! Diz que vai começar a fazer a casinha.
— Não penses nisso. Antes pobres e juntos que ricos e um para cada lado.
— Tens razão. Domingo chega depressa.
Foi para o quarto. Benzeu-se e deitou-se. Quando a mulher acabou de lavar a loiça e ocupou o lugar a seu lado, na cama, António dormia.