quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O rosto de Margarida


Texto: José Abílio Coelho
Desenhos: Domingo



                                     Em memória de minha Mãe e a todos aqueles que, algum dia,
                                     conviveram de perto com alguém que padeceu da doença de Alzheimer 


Soaram na torre quatro badaladas.
Àquela hora o sol andava ainda por sítios onde Ângelo nunca fora. Nem sabia como eram. Por vezes, só muito por vezes, surgia-lhe uma ponta de curiosidade: de que tamanho seria o mundo? Talvez de dez aldeias como a sua, ou de vinte. Ou talvez nem fosse assim tão grande.
Ele nunca passara para o lado de lá do rio! E não passara para a outra margem por lhe terem dito que o rio era fundo como o inferno e que já levara na corrente homens e mulheres, e crianças, e cabras e vacas, e até casas inteiras que nunca mais foram vistas. E para o outro lado da aldeia, para aquele de onde o sol se levanta? Para aí, o máximo que vira fora o Monte Grande que ficava para além daqueloutro onde em rapaz subia para levar o pequeno rebanho de cabras a pastar. Olhava-o enquanto as cabras rapavam a flor ao mato e pensava que o mundo acabava ali, onde ficava o monte que estava para lá daquele. Devia ser lá, atrás do Monte Grande, o ninho do sol.


Na verdade, o tamanho do mundo também não lhe interessava muito. Sempre vivera na aldeia e era lá que queria continuar a viver. A aldeia era o seu mundo e quando morresse (como o pai ou como o avô Sebastião, que fora o homem mais velho que conhecera e aquele que possuíra o maior bigode de que tinha memória, e também o homem mais amigo que tivera desde sempre), sabia muito bem que pedaço de terra lhe tocaria ocupar por detrás da igreja, sob aquela pedra antiga e tosca ao pé do portal de ferro.
Enquanto divagava, deitado no escuro, ouviu o sino bater de novo, uma só badalada desta vez.
«Quatro e meia», pensou.
Levantou-se, enfiou as calças que ajustou à cintura com um atilho de cerda, vestiu por sobre as camisolas com que dormia a samarra de gola de pele de raposa que herdara do pai e meteu os pés, sem meias, aos socos de madeira e couro.
A mulher só sentiu o movimento quando ele já saía quarto fora. Chamou-o:
— Ó, homem, aonde vais…?
Da ombreira, virou ligeiramente a cabeça para lhe responder:
— Apor o gado! Não sabes que tenho um carreto para fazer? E que quando chegar do carreto tenho que ir buscar a dorna grande que emprestei ao primo Sebastião? Dias não são anos!...
A mulher, ainda meio estremunhada, sentou-se na cama.
— Que gado?! Que dorna, homem?! Não sabes que já não temos gado?!... Não sabes que o primo Sebastião já cá não está?! Ó, homem… deita-te e dorme, que hoje é dia de Natal! Até é pecado sair da cama tão cedo...
Ele nem a escutou. Passou pela cozinha às escuras, saiu para a barra e desceu ao quinteiro.
Os socos matraqueavam nas escadas de granito secular. Nem sentiu a brisa gelada a agredir-lhe a face por barbear. Tudo — a casa, o quinteiro, a aldeia inteira — se encontrava ainda sob uma pesada cortina de escuridão.
De combinação, os ombros cobertos por uma velha mantinha, a mulher saiu-lhe à barra trazendo na mão uma candeia de chama tremelicante.
Ele viu-a ali plantada, imóvel, sem fala, embora a contraluz provocada pela chama apenas lhe permitisse divisar os contornos de uma figura esguia, irreconhecível.
— Pareces uma alma penada — disse-lhe ele, dando uma gargalhada.
— Ó, homem, volta para a cama. Não vês que já não temos gado?! Não vês que agora são os novos caseiros que tratam da quinta e que só aqui moramos porque os patrões são uns santos e nos deixaram ficar?...
Escutou-lhe as palavras, transparentes como água, mas nada entendeu do que diziam. Que caseiros novos?! Que patrões?!
Um galo, ali próximo, desperto pelas vozes de ambos cantou a madrugada. Ângelo sorriu. Ainda se lembrava do que era um galo. Chegou-se ao carro-de-bois arrumado a um lado do quinteiro e procurou o ferro: o ferro, aquele com que se trava o jugo...
— Ó, mulher, sabes do ferro?
— Qual ferro, homem?!
— Aquele…
— Mas qual ferro, homem?
— O ferro, carano! O ferro de botar ao jugo!
— O chavelhão! E para que o queres tu?!
Para apor o gado. Já te disse que preciso de ir por um carreto e depois a casa do Sebastião buscar a dorna grande. Ele é que já ma devia ter cá trazido... E olha, acorda os moços para me deitarem uma mão.
— Os moços estão longe... Coitados...
— Vá, vai lá dizer-lhes que estou à espera.
A mulher desistiu; virou-lhe as costas. Sentia uma brisa gelada que se lhe entranhava nos ossos. Tremia. Tremia de frio e de medo. O homem estava a ficar desmiolado.


Entrou na cozinha pobre, com uma lágrima sem força a molhar-lhe apenas um lado da face. O saco oposto estava seco. Reparou que, por sob a cinza, ainda havia umas brasas vivas da fogueira da noite anterior, a fogueira da Consoada, até há poucos anos motivo de alegria, agora nada mais que uma fogueira igual às de todos os dias de Inverno. Foi ao cesto e deitou uma mão-cheia de chamiça no borralho. A custo, debruçou-se sobre as brasas e soprou. Uma, duas, três vezes, até que a chamiça estalou em chamas. Usou uns guiços para manter o fogo alto e depois procurou uma canhota e colocou-a com cuidado sobre a chama, e depois outra e mais outra. O fogo aceso era a única alegria a casa.
Lá fora, Ângelo pigarreou. Voltou a subir a escada de granito antigo e entrou na cozinha, coberta de telhas pretas como a morte. A mulher estava em pé frente à fogueira que fazia tremelicar sombras nas paredes, de costas para a porta e para ele. Ficou parado, a olhá-la, como se ali estivesse uma desconhecida... Já não se lembrava qual era o nome dela! E assim, pelas costas, nem os contornos do rosto recordava, embora tivessem partilhado sessenta anos de vida e gerado onze filhos.
Foi ela, sentindo-o, quem falou sem se voltar:
— Ó, homem, não andas bom...
— Quê!
— Trocas tudo, não te lembras das coisas. Passas a vida a falar do que aconteceu há cinquenta anos e não te lembras do que falámos ontem!
Ângelo virou-lhe as costas, em irado silêncio.
Voltou a sair para a barra, a descer as escadas, até se deter a meio do quinteiro. Ela, a contragosto, veio até à porta para ver o que ele iria fazer.
O relógio da torre deixou cair cinco badaladas.
— Ó homem, anda-te deitar mais um bocado, ou anda-te sentar no escano, ao pé do lume. Este frio mata-te!
— Estás é douda. Já te disse do carreto que tenho para fazer agora de manhã. E que quando voltar vou pela dorna à casa do primo Sebastião. Parece que estás é surda, que não ouves bem o que te dizem!
— É de noite, anda-te deitar mais um bocado?
— Não me quero deitar. Não me fales nisso!
— Mas vais ficar aí, em pé, a fazer o quê? Pelo menos vem para aqui, para ao pé do lume.
E ele, num rompante:
— Olha, queres saber? Vou mas é à missa pelo meu avô Sebastião. — Deu nova gargalhada. — Vou mas é à missa pelo homem dos bigodes...
Saiu para o caminho batendo o enorme portão com estrondo, sem dar tempo que a mulher lhe dissesse mais nada.
Ouvia-se agora vários galos a cantar. E cães ladravam na aldeia, como que protestando por alguém os ter privado do sossego matinal.
Ângelo caminhou com pressa no chão empedrado, os socos de madeira resvalando no granito tosco, soando a oco. Passou junto à igreja que estava às escuras, ao lado do cemitério que lhe ficava ao pé e do cruzeiro que a procissão de São Tiago costumava contornar para voltar atrás no dia da festa de Julho, e prosseguiu a caminhada como se partisse para uma demorada viagem por terras cuja dimensão desconhecia. Ele, que nunca fora para além do monte que ficava antes do último monte do mundo e nunca se atrevera a passar para o lado de lá do rio!


Ali ao pé cantou um galo. Os cães continuavam a ladrar, uns mais perto, outros ao longe. Aos galos vá que não vá, ainda os suportava. Mas o ladrar dos cães enervava-o. Ainda se lembrava do velho Malhado, raça de cão aquele, bom para desentocar lebres e coelhos que ele atacava a golpes de cajado... Que lhe terá acontecido, que nunca mais o viu ou ouviu falar nele? Mas o Malhado não ladrava: farejava com graça, de orelhas erguidas ao alto, e dava sinal de lebre com um simples latido e um curto abanar de cauda. O Malhado não era como estes cães estúpidos de agora que não se calam um só segundo...
Para se distrair dos latidos que o irritavam, voltou a pensar: De que tamanho será o mundo? Talvez de vinte aldeias como esta. Ou de cinquenta, ou de cem?! Talvez o mundo até fosse grande. Há muitos anos ouvira o padre Bartolomeu dizer, num sermão, que nem os padres tinham todos lugar reservado no céu. E o céu, telhado do mundo cujo tamanho desconhecia, era grande: bem o via todo estrelado por cima da cabeça, poisando as pontas além do rio e por detrás do Monte Grande! Voltou a pensar no sermão do padre Bartolomeu: Um padre por aldeia e não terem todos lugar no céu?! Era estranho! Então deviam ser mesmo muitas as aldeias, e talvez o mundo fosse até maior que mil aldeias como a sua. Mil, que raio de número! Quanto seria mil? Ouvira muitas vezes dizer mil, mas não fazia ideia quanto era mil. Também nunca tivera quem lhe ensinasse letra ou algarismo...
De repente, estacou na sua caminhada. E o silêncio que se fez tornou o ladrar dos cães ainda mais irritante. Porque havia parado? Que estranho: por muito esforço que fizesse, não conseguia lembrar-se de como eram os filhos... Também não se lembrava do rosto da mulher! Fez um esforço para o recordar, mas nem assim: não se recordava das feições, nem de como eram os olhos, nem da cor do cabelo... Nada, nada, nada! Abstraído, voltou a caminhar, lentamente, cogitando sobre as razões daquela estranha ausência de tudo! E os pequenos, por onde andariam os pequenos? Quantos pequenos?...
Deu-se então conta de que, tamanqueando, tinha atravessado a aldeia inteira, e de que escutava agora, nitidamente, as águas do rio que galgava apressado para os lados onde o sol costuma pôr-se. Sentiu frio. Reparou que o céu perdia a cor de fuligem e ajeitou ao pescoço a gola de pele de raposa do velho casaco. Continuou a caminhar: o som dos galos a cantar e o ladrar dos cães chegava-lhe agora de longe. Sem saber como, encontrava-se à margem do rio, largo, largo, largo. Imenso e colérico, o movimento ondulante das águas barrentas já descortinável no desnovelar da noite.


O sino, lá muito para trás, voltou a badalar horas, mas nem se deu ao trabalho de as contar. O rio estava ali, à sua frente. O rio!
«Se eu conseguir atravessar o rio, vai ser hoje que vou saber de que tamanho é o mundo, descobrir se é realmente tão grande que seja capaz de dar igreja a tantos padres, tantos, tantos que nem sequer cabem no céu», pensou. Lembrava-se do padre Bartolomeu lhe ter ensinado o catecismo, mas não se lembrava do que tinha acontecido ao padre Bartolomeu. Terá tido um cantinho do céu? Terá o padre Bartolomeu algum dia atravessado o rio? O rio, ali estava o rio, o que existiria para além dele?
Já iria ver...


Nem se despiu nem descalçou os socos. Pela ladeira do campo do moinho velho entrou na água, que começou a sugá-lo, lentamente. Ainda tentou amarrar-se a uns ramos tombados no leito, mas... estava pasmado: como fora esquecer-se de quantos eram os pequenos, do rosto da mulher, e da cor do seu cabelo, e do nome e de como eram os seus olhos! Lembrar, lembrava-se bem era das feições daquela rapariga com quem jogava à piúrra em criança, que lhe disputava os pinhões retirados às pinhas do monte que secava ao pé da lareira, aquela de há muitos anos, aquela... filha dos patrões da quinta que seus pais traziam de terça, e que depois partiu para nunca mais voltar. Dessa, lembrava-se ele bem: os olhos da cor da alface, o cabelo ondulado e loiro como campos de centeio pelo Maio, o sorriso alegre, a palavra franca. E nem do nome dela se esquecera: chamava-se Margarida, e tinha uns dentes tão brancos como as alvas toalhas dos altares da igreja...