sábado, 1 de dezembro de 2012

A única vez na vida que andei num Ferrari



O embaixador Dário Castro Alves


Em Fortaleza (Brasil), sua cidade natal, onde habitou, doente, nos últimos anos da sua vida, morreu no dia 6 do mês de Junho (2010) o embaixador Dário Moreira de Castro Alves, querido amigo.
Autor de vários livros onde abordou, especialmente, costumes e exemplos gastronómicos na obra de Eça de Queirós, e com vasta matéria publicada na imprensa, onde a temática da história brasileira e portuguesa era presença constante, para além de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará, Dário Castro Alves era académico de mérito da Academia Portuguesa da História e foi presidente do conselho de Curadores da Fundação Luso-Brasileira e director do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Internacional de Lisboa. Depois de ter terminado a sua carreira diplomática em Lisboa, após ter sido embaixador do Brasil em Nova Iorque (ONU), Buenos Aires, Moscovo e Roma, Dário Castro Alves decidiu ficar, por vários anos ainda, a residir em Lisboa.
Casado em primeiras núpcias com a romancista Dinah Silveira de Queirós, o embaixador Dário Castro Alves viria, depois de enviuvar, a contrair segundo matrimónio com D. Rina Bonadies Castro Alves — quadro superior da embaixada do Brasil e também autora de vários trabalhos publicados em livro.

Conheci o embaixador Dário Castro Alves pela mão amiga de António Celestino, numa tarde em que, juntos, assistíamos em Lisboa à apresentação de mais um livro de Jorge Amado. Foi, tal como D. Rina, duma simpatia extrema e, sendo eu um jovem provinciano e inculto, prestou-me tamanha atenção que parecia estar a lidar com um igual entre iguais. Mais tarde, durante a refeição em conjunto, falou-me da sua vida de diplomata e das vezes que, com convites sobrepostos, se via obrigado a jantar duas e três vezes na mesma noite, a sair de uma recepção para se fazer presente noutra, regressando uma ou duas horas depois à primeira.
— Dário nasceu para ser embaixador — dizia-me D. Rina com um sorriso, enquanto o marido ia contando as suas andanças de recepção em recepção. — É capaz de ir a três jantares na mesma noite, fazendo que come sem comer e regressando a casa com fome...
Daí em diante, encontrei-me com ele e com D. Rina várias vezes e nas mais diversas circunstâncias, sentindo sempre, da parte de ambos um respeito e até uma espécie de protecção a que, confesso, não estava muito habituado. Apesar de eu seu o jovem da aldeia distante da capital, filho de gente do mais humilde que havia, Dário Castro Alves fazia sempre o favor de me convidar para várias iniciativas culturais que organizava e, entre elas, para os jantares temáticos que tinham ementas retiradas das obras de Eça de Queirós, de seu compatriota Jorge Amado, ou de Camilo Castelo Branco.
Quando publiquei o meu primeiro livrinho, «Contos do Outro Mundo», péssimo trabalho de principiante, escreveu uma recensão que publicou em vários jornais, recensão que me fez inchar de vaidade de tanta coisa bonita que dizia a respeito dos três continhos que compunham o pequeno volume.

Um dia, telefonei-lhe, pedindo-lhe se vinha à Póvoa de Lanhoso. António Celestino, meu conterrâneo e seu amigo de muitos anos, apresentava o livro «Contos em Forma de Cereja», completava oitenta anos, a câmara pretendia fazer-lhe uma homenagem colocando o seu autógrafo no monumento «Às Gentes das Artes e das Letras das Terras de Lanhoso» que o presidente Tinoco de Faria, em boa hora, decidira criar e mandar implantar à entrada da Casa da Botica.
António Celestino tem uma profunda ligação ao Brasil e à sua Cultura e a presença do embaixador do Brasil, embora já aposentado, prestigiaria o poeta de S. João de Rei. Dário Castro Alves disse imediatamente que sim. Pagou do seu bolso a viagem de avião de Lisboa para o Porto, pedindo-me apenas que o mandasse buscar. Eu próprio o fui esperar e, como a cerimónia só estivesse agendada para a tarde e noite, fomos, eu e o embaixador, almoçar ao restaurante do Victor, em S. João de Rei.
Conversávamos, sentados numa mesa do fundo da esplanada do restaurante, eu com um fato claro, ele ataviado no seu clássico terno cinzento com casaco de trespasse e com gravata preta sobre camisa branca. Numa enorme mesa, ao lado da nossa, almoçava um grupo enorme de empresário, creio que os donos do então recém aberto cash & carry Arminho. Gente de muito dinheiro, haviam convidado o célebre repentista e cantador ao desafio Cachadinha para animar o almoço.
A dada altura, estava o nosso almoço quase no fim, provávamos já as célebres sobremesas da casa depois de nos termos deliciado com o bacalhau, o Victor, também ele um diplomata, disse ao Cachadinha fosse à nossa mesa cantar qualquer coisa, pois almoçavam ali o senhor embaixador do Brasil e um amigo. O cantador aproximou-se, dando aos foles da concertina e atirou uma quadra, já não me recordo sobre o quê. Era algo engraçado porque rimos todos, nós, e os da mesa que estava ao nosso lado. Cachadinha cantou mais duas ou três quadras e, a dada altura, para rematar, engenhou mais ou menos isto: «Quem canta usa a garganta / e quem vê dá uso a vista. / Com vista a continuar / Vou cantar prà outra mesa / e por isso me despeço. / Deixo as minhas saudações / ao senhor embaixador / e mais a seu motorista».
Um fecho bem arrancado pelo repentista de Vila Verde, não se tivesse dado o lamentável episódio de, ao referir-se ao embaixador, ter feito uma vénia virado para mim, enquanto que, ao referir-se ao motorista, dirigia a saudação ao embaixador Dário Castro Alves.
Eu fiquei corado de vergonha, mas o embaixador, com aquele seu jeito característico, riu do engano e conclui: «Às vezes preferia mesmo ser o motorista...»
O Victor é testemunha desta situação nada diplomática, que relembra muitas vezes.

A minha amizade com o embaixador Dário Moreira de Castro Alves manteve-se por longos anos e, mesmo depois de, pela segunda vez viúvo e já doente, se ter retirado para o Brasil, mantivemos contacto permanente. Chegou-me a apresentar um irmão, Ivan Moreira de Castro Alves — um excelente contista, por sinal.

Quando apresentou um dos seus mais recentes livros cuja temática voltava a ser a obra de Eça de Queirós, desta vez a bebida na obra do autor de «A Cidade e as Serras», fui com António Celestino ao Porto assistir ao lançamento. Creio que a apresentação foi pelo entardecer de uma sexta-feira, num palácio sobre o rio Douro. Admirei a forma como, entre cerca de uma centena de amigos presentes, conseguia dar atenção a todos: a mesma atenção equilibrada e serena, "milagre" que, talvez não seja pecado dizê-lo, só um diplomata era capaz fazer.
Nessa mesma tarde, convidou-nos, a António Celestino e a mim, para um almoço. «Vai ser na Póvoa de Lanhoso», disse. «Quero que Sãozinha [esposa de Celestino] também esteja presente, e vou convidar ainda um amigo que reside em Felgueiras, que gostaria viesse almoçar connosco».
Marcámos o almoço para o domingo seguinte, no restaurante do monte do Pilar. Dário Castro Alves queria visitar o castelo e aquele, para o efeito, era o restaurante indicado. Combinámos encontrar-nos no alto do Pilar no domingo pelo meio dia, com ele viriam D. Rina e o motorista do consulado do Porto, destacado para o transportar enquanto estivesse no Norte.
No sábado, o embaixador telefonou-me a pedir um favor: o seu amigo de Felgueiras viria almoçar connosco, mas não sabia onde era o restaurante. De forma que, pedia-me, se eu pudesse esperá-lo no centro da vila ao meio-dia exacto, iria com esse seu amigo até ao restaurante. Disse que sim, mas como iria conhecer o seu amigo? «Eu já lhe disse como você é e, se esperar mesmo no centro, ao pé da estrada, ela há-de reconhecê-lo», respondeu o embaixador.
No domingo, uns minutos antes do meio-dia eu estava no centro da vila, em local de passagem dos carros que viessem do lado de Fafe. Eu esperava um Mercedes, talvez um BMW, mas eis que, de repente, surge do lado do Largo António Lopes, foi um vermelhíssimo e reluzente Ferrari! Vinha muito devagar e parou ao pé de mim. Pelo vidro aberto, o senhor de meia-idade que o conduzia, perguntou-me: «É fulano?» Disse que sim. «Então vamos...» Entrei, então, pela primeira e única vez na minha vida num Ferrari. Até isso fiquei a dever ao Senhor Embaixador Dário Castro Alves, que, sendo quem era, me tratou sempre como se eu fosse o que não sou: alguém importante...
Paz à sua alma, querido amigo.