![]() |
O embaixador Dário Castro Alves |
Em Fortaleza (Brasil), sua cidade natal, onde habitou, doente, nos últimos anos da sua vida, morreu no dia 6 do mês de Junho (2010) o embaixador Dário Moreira de Castro Alves, querido amigo.
Autor de vários livros
onde abordou, especialmente, costumes e exemplos gastronómicos na
obra de Eça de Queirós, e com vasta matéria publicada na imprensa, onde a
temática da história brasileira e portuguesa era presença constante, para além
de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará, Dário Castro
Alves era académico de mérito da Academia Portuguesa da História e foi presidente
do conselho de Curadores da Fundação Luso-Brasileira e director do Centro de
Estudos Brasileiros da Universidade Internacional de Lisboa. Depois de ter
terminado a sua carreira diplomática em Lisboa, após ter sido embaixador do
Brasil em Nova Iorque (ONU), Buenos Aires, Moscovo e Roma, Dário Castro Alves
decidiu ficar, por vários anos ainda, a residir em Lisboa.
Casado em primeiras núpcias
com a romancista Dinah Silveira de Queirós, o embaixador Dário Castro Alves
viria, depois de enviuvar, a contrair segundo matrimónio com D. Rina Bonadies
Castro Alves — quadro superior da embaixada do Brasil e também autora de vários
trabalhos publicados em livro.
Conheci o embaixador Dário Castro Alves
pela mão amiga de António Celestino, numa tarde em que, juntos, assistíamos em
Lisboa à apresentação de mais um livro de Jorge Amado. Foi, tal como D. Rina, duma
simpatia extrema e, sendo eu um jovem provinciano e inculto, prestou-me tamanha
atenção que parecia estar a lidar com um igual entre iguais. Mais tarde, durante a refeição em conjunto, falou-me da sua vida de diplomata e das vezes que, com convites
sobrepostos, se via obrigado a jantar duas e três vezes na mesma noite, a sair
de uma recepção para se fazer presente noutra, regressando uma ou duas horas
depois à primeira.
— Dário nasceu para ser
embaixador — dizia-me D. Rina com um sorriso, enquanto o marido ia contando as
suas andanças de recepção em recepção. — É capaz de ir a três jantares na mesma
noite, fazendo que come sem comer e regressando a casa com fome...
Daí em diante, encontrei-me com ele e com
D. Rina várias vezes e nas mais diversas circunstâncias, sentindo sempre, da
parte de ambos um respeito e até uma espécie de protecção a que, confesso, não
estava muito habituado. Apesar de eu seu o jovem da aldeia distante
da capital, filho de gente do mais humilde que havia, Dário Castro Alves fazia
sempre o favor de me convidar para várias iniciativas culturais que organizava
e, entre elas, para os jantares temáticos que tinham ementas retiradas das
obras de Eça de Queirós, de seu compatriota Jorge Amado, ou de Camilo Castelo
Branco.
Quando publiquei o meu
primeiro livrinho, «Contos do Outro Mundo», péssimo trabalho de
principiante, escreveu uma recensão que publicou em vários jornais, recensão
que me fez inchar de vaidade de tanta coisa bonita que dizia a respeito dos
três continhos que compunham o pequeno volume.
Um dia, telefonei-lhe, pedindo-lhe se
vinha à Póvoa de Lanhoso. António Celestino, meu conterrâneo e seu amigo de muitos anos, apresentava o livro
«Contos em Forma de Cereja», completava oitenta anos, a câmara pretendia
fazer-lhe uma homenagem colocando o seu autógrafo no monumento «Às Gentes
das Artes e das Letras das Terras de Lanhoso» que o presidente Tinoco de Faria,
em boa hora, decidira criar e mandar implantar à entrada da Casa da Botica.
António Celestino tem
uma profunda ligação ao Brasil e à sua Cultura e a presença do embaixador do
Brasil, embora já aposentado, prestigiaria o poeta de S. João de Rei. Dário Castro Alves disse imediatamente
que sim. Pagou do seu bolso a viagem de avião de Lisboa para o Porto,
pedindo-me apenas que o mandasse buscar. Eu próprio o fui esperar e, como a
cerimónia só estivesse agendada para a tarde e noite, fomos, eu e o embaixador,
almoçar ao restaurante do Victor, em
S. João de Rei.
Conversávamos, sentados
numa mesa do fundo da esplanada do restaurante, eu com um fato claro, ele ataviado no
seu clássico terno cinzento com casaco de trespasse e com gravata preta sobre camisa branca. Numa enorme mesa, ao lado da nossa,
almoçava um grupo enorme de empresário, creio que os donos do então recém aberto
cash & carry Arminho. Gente de muito dinheiro, haviam
convidado o célebre repentista e cantador ao desafio Cachadinha para
animar o almoço.
A dada altura, estava o
nosso almoço quase no fim, provávamos já as célebres sobremesas da casa depois de
nos termos deliciado com o bacalhau, o Victor, também ele um diplomata, disse ao Cachadinha fosse
à nossa mesa cantar qualquer coisa, pois almoçavam ali o senhor embaixador do
Brasil e um amigo. O cantador aproximou-se, dando aos foles da concertina e
atirou uma quadra, já não me recordo sobre o quê. Era algo engraçado porque
rimos todos, nós, e os da mesa que estava ao nosso lado. Cachadinha
cantou mais duas ou três quadras e, a dada altura, para rematar, engenhou mais
ou menos isto: «Quem canta usa a garganta / e quem vê dá uso a vista. / Com
vista a continuar / Vou cantar prà outra mesa / e por isso me despeço. / Deixo
as minhas saudações / ao senhor embaixador / e mais a seu motorista».
Um fecho bem arrancado
pelo repentista de Vila Verde, não se tivesse dado o lamentável episódio de, ao
referir-se ao embaixador, ter feito uma vénia virado para mim, enquanto que, ao
referir-se ao motorista, dirigia a saudação ao embaixador Dário Castro Alves.
Eu fiquei corado de
vergonha, mas o embaixador, com aquele seu jeito característico, riu do engano
e conclui: «Às vezes preferia mesmo ser o motorista...»
O Victor é testemunha
desta situação nada diplomática, que relembra muitas vezes.
A minha amizade com o embaixador Dário
Moreira de Castro Alves manteve-se por longos anos e, mesmo depois de, pela
segunda vez viúvo e já doente, se ter retirado para o Brasil, mantivemos
contacto permanente. Chegou-me a apresentar um irmão, Ivan Moreira de Castro
Alves — um excelente
contista, por sinal.
Quando apresentou um dos seus mais recentes
livros cuja temática voltava a ser a obra de Eça de Queirós, desta vez a bebida
na obra do autor de «A Cidade e as Serras», fui com António Celestino ao Porto
assistir ao lançamento. Creio que a apresentação foi pelo entardecer de uma
sexta-feira, num palácio sobre o rio Douro. Admirei a forma como, entre cerca de
uma centena de amigos presentes, conseguia dar atenção a todos: a mesma atenção
equilibrada e serena, "milagre" que, talvez não seja pecado dizê-lo,
só um diplomata era capaz fazer.
Nessa mesma tarde,
convidou-nos, a António Celestino e a mim, para um almoço. «Vai ser na Póvoa
de Lanhoso», disse. «Quero que Sãozinha [esposa de Celestino] também
esteja presente, e vou convidar ainda um amigo que reside em Felgueiras, que
gostaria viesse almoçar connosco».
Marcámos o almoço para
o domingo seguinte, no restaurante do monte do Pilar. Dário Castro Alves queria visitar
o castelo e aquele, para o efeito, era o restaurante indicado. Combinámos
encontrar-nos no alto do Pilar no domingo pelo meio dia, com ele viriam D. Rina
e o motorista do consulado do Porto, destacado para o transportar enquanto
estivesse no Norte.
No sábado, o embaixador
telefonou-me a pedir um favor: o seu amigo de Felgueiras viria almoçar
connosco, mas não sabia onde era o restaurante. De forma que, pedia-me, se eu
pudesse esperá-lo no centro da vila ao meio-dia exacto, iria com esse seu amigo
até ao restaurante. Disse que sim, mas como iria conhecer o seu amigo? «Eu
já lhe disse como você é e, se esperar mesmo no centro, ao pé da estrada, ela
há-de reconhecê-lo», respondeu o embaixador.
No domingo, uns minutos
antes do meio-dia eu estava no centro da vila, em local de passagem dos carros
que viessem do lado de Fafe. Eu esperava um Mercedes, talvez um BMW, mas eis
que, de repente, surge do lado do Largo António Lopes, foi um vermelhíssimo e
reluzente Ferrari! Vinha muito devagar e parou ao pé de mim. Pelo vidro aberto,
o senhor de meia-idade que o conduzia, perguntou-me: «É fulano?» Disse
que sim. «Então vamos...» Entrei, então, pela primeira e única vez na
minha vida num Ferrari. Até isso fiquei a dever ao Senhor Embaixador Dário
Castro Alves, que, sendo quem era, me tratou sempre como se eu fosse o que não
sou: alguém importante...
Paz à sua alma, querido amigo.